Sentado
no desconfortável banco de metal do ponto de ônibus, Felício
levantou a cabeça e contemplou o grande plátano sesquicentenário
erguido na calçada oposta daquela avenida de médio fluxo no
principiar da manhã. O vento frio daquele primeiro dia de outono
parecia prenunciar o rigor de um inverno que se esperava fosse o mais
severo da década. Com as faces geladas, Felício retirou do bolso do
casaco um lenço de papel e limpou o nariz que começava a escorrer.
Vagaroso em seus pensamentos, percebeu que uma folha do alto do
plátano se desprendeu após uma rajada de vento. Sua expressão
triste e conformada foi acompanhando a bamboleante trajetória
descendente da folha. A qualquer outro observador, tal acontecimento
não teria ocupado mais do que poucos segundos, porém, Felício o
registrava com morosa percepção, captando cada instante da queda
num quadro de cores e formas. O contraste do céu cinzento, o tom
avermelhado da copa da árvore, o edifício residencial um pouco
rubro e um pouco marrom mais atrás, e aquela folha a despencar mais
de vinte metros sem controle do próprio destino. Quando, finalmente,
o folículo encontrou o chão, Felício olhou para baixo, mirando os
próprios pés para ter certeza de que a queda não havia sido dele.
Só no ponto de ônibus, a sua impressão era a única daquele fato,
não podia pedir uma segunda opinião nem comparar a sua percepção
com a de outro alguém. Teria aquela folha demorado tanto para
cumprir uma das elementares leis newtonianas? Eu não estava lá para
registrar, pois esse acontecimento me foi contado pelo próprio
Felício algum tempo depois, então tenho a palavra dele por
testemunho, assim como o leitor agora tem o meu.
Após
constatar que o chão seguia firme e que não havia compartilhado da
queda, Felício, um homem de contrastantes situações em sua vida,
imerso em uma melancolia paralisadora, percebeu o ônibus se
aproximando. Senti a tristeza dele quando ouvi esse relato – ainda
sinto um mal-estar ao tentar me colocar em seu lugar. O transporte
coletivo, o seu objetivo momentâneo, se aproximava e ele não teve
energia para se levantar e sinalizar a sua intenção de embarcar. A
apatia o impedia de dar sustentação às próprias pernas. Não teve
forças para se levantar nem para estender o dedo indicador para o
motorista da condução. Se há algo chamado destino, foi nesse
momento que ele atuou. Três metros à frente do ponto, o ônibus
parou para uma senhora de muleta que andava o mais rápido que podia
e sinalizava da calçada para que o transporte não a deixasse para
trás. Enfim, Felício tinha a oportunidade de corrigir o que o seu
desânimo havia produzido. Ainda assim, depois ele me contou que o
ônibus parecia estar muitos quilômetros adiante, uma distância que
ele não poderia percorrer. Pensou que se o veículo não tinha
parado para ele, isso deveria significar alguma coisa: talvez não
devesse embarcar. Chegaria atrasado à consulta médica, mas pegaria
o próximo ônibus. Felício ficou mais de uma hora sentado naquele
banco duro, sendo golpeado pelo vento frio, enquanto pensava apenas
na própria infelicidade e em como a vida o encarava com uma
carranca. Viver era uma desesperança. Apenas no terceiro ônibus que
parou naquele ponto, Felício embarcou. Ele ainda me disse que por
muito pouco não perdeu o ponto de desembarque, mas que juntou
energia de algum lugar desconhecido para conseguir se levantar e
descer no local certo.
O
atraso à consulta médica já ultrapassava uma hora, o que deixou a
secretária contrariada. Felício sentou-se e aguardou por uma brecha
na agenda do psiquiatra. Se a vida não lhe devolvesse mais uma
carranca, ele conseguiria um atendimento ainda nesse dia. E aquela
manhã parecia, enfim, boa para sorrisos. Com mais um paciente
faltante, o médico chamou o seu próximo cliente. Ao se apresentar,
se atrapalhou e disse se chamar Tristício. Aquilo o fez corar e
gaguejar, seus olhos marejaram, com muita dificuldade conseguiu
consertar o seu engano e pronunciar corretamente o próprio nome.
Contudo, a sua voz saiu embargada como se aquilo tivesse partido o
seu coração. O psiquiatra tentou conter o seu espanto com aquela
cena, percebendo naquele mesmo instante o quanto o sujeito diante de
si estava fragilizado. O peso daquela folha de plátano cadente sobre
ele bastaria para fazê-lo desabar. Em relação à alcunha
Tristício, ele explicou que a ex-mulher, que o havia abandonado,
começou a chamá-lo assim para caçoar da sua languidez. Felício
era um homem sozinho, envergonhado da própria condição, triste com
a própria tristeza, um sujeito que perdera todos os amigos porque
não ria de piada alguma, desdenhava das anedotas, se mostrava
apático em todas as ocasiões. Ninguém aguentava o seu baixo-astral
por muito tempo. Começaram a dizer que ele tinha uma energia pesada,
logo deixaram de manter contato. Felício também já não tinha mais
ânimo para começar uma conversa, então passou a dar valor ao
silêncio.
Em
seu papel de psiquiatra, o médico rabiscou duas drogas num
receituário e pediu para que ele retornasse novamente em trinta
dias. Diante do olhar descrente de um paciente que já tinha tentado
diferentes tratamentos com um punhado de especialistas para amenizar
a melancolia, o médico resolveu arriscar. Descrevendo um tratamento
experimental, pediu a Felício que fosse ao Centro Médico da
Universidade para se submeter ao que poderia ser a solução do seu
mal. O termo “solução” fez algum efeito que medicamento nenhum
jamais havia conseguido obter. Em hipótese alguma qualquer
psiquiatra tinha empregado qualquer variação do vocábulo
solucionar ao abordar o seu estado clínico, por isso aquela
indicação lhe pareceu tão promissora. Algum tempo depois, Felício
me contou que ficara fascinado com o pensamento de que uma palavra
pode enterrar ou sublevar uma pessoa. Havia uma solução para o seu
“tristício”.
Ao
chegar em casa, Felício amassou a receita com as duas mãos e ligou
para o Centro Médico da Universidade. Foi informado de que a
instituição estava selecionando voluntários diagnosticados com
depressão para uma pesquisa com a finalidade de desenvolver um novo
medicamento. Depois de fornecer os seus dados pessoais, endereço e
telefone de contato, ficou acertado que Felício compareceria ao
local combinado na manhã seguinte.
Às
nove horas da manhã, Felício descia do táxi e entrava no Centro
Médico da Universidade. Depois de preenchidos todos os documentos
legais para que pudesse fazer parte da pesquisa, conheceu a
professora e biomédica Dra. Letícia, a minha supervisora.
Responsável pelos mais recentes avanços no estudo de drogas que
agem no organismo para o combate da depressão, ela se tornara famosa
no mundo inteiro, especialmente entre a indústria farmacêutica que
investia valores elevados nessa pesquisa. Dra. Letícia evitava usar
a palavra cura, pois os efeitos positivos da droga, na teoria, eram
estimados em 99% dos pacientes, o que não garantia o pronto
restabelecimento da saúde para todos. A curiosidade de Felício fez
com que perguntasse se aquela poderia ser a solução do seu problema
– era a tentativa de confirmação daquele termo tão importante
para ele. Quando ela respondeu que sim, que poderia ser a solução,
Felício já começou a se sentir melhor.
Eu
mesmo, como um dos cientistas envolvidos na pesquisa, conduzi Felício
ao consultório reservado e lá conversamos durante vinte minutos.
Ainda que ele já tivesse assinado todos os documentos, tornei a
perguntar se ele estava ciente do que estava fazendo, se havia alguma
intenção de voltar atrás em sua decisão. Suas negativas eram
enfáticas ao mesmo tempo em que pontuava que estava ali para obter
uma solução. Confesso que acabei me afeiçoando àquele homem de
aparência fragilizada que parecia ter ânimo apenas para estar ali.
Felício me contou sobre a sua vida e o modo como a melancolia havia
submergido tudo o que existia de bom para ele. Por três vezes ele
implorou que eu não o colocasse no grupo placebo, rogou a um Deus,
no qual ele mesmo não tinha mais esperanças, que eu lhe desse a
droga de verdade. Eu era o responsável por separar os voluntários
em dois grupos: o controle e o de tratamento. A regra era bastante
simples, selecionar os sujeitos com números ímpares para o grupo
que receberia pílulas de gelatina natural e os demais para o grupo
que faria uso do medicamento a ser testado. Nesse momento senti um
conflito ético a me martelar a consciência. Felício era o sujeito
número 13 daquela pesquisa, mas como eu poderia fazê-lo voltar
repetidas vezes ao Centro Médico da Universidade para dar-lhe um
comprimido de gelatina? Mesmo sendo um cientista, fiz-me de
supersticioso e descartei o número 13, então se alguém perguntasse
pela ausência daquele numeral, eu diria que não queria que
tivéssemos azar na pesquisa. Com essa manobra, Felício passou a ser
o número 14 e recebeu o seu medicamento.
Durante
duas semanas, nas segundas, quartas e sextas-feiras, todos os
voluntários desse estudo compareciam ao Centro Médico da
Universidade. Felício estava mudado desde o segundo dia em que
engoliu a pílula. Havia um bom humor e uma disposição que não
pareciam combinar com ele. Sorrindo bastante, ele me contou que
comprou uma pá, foi até o parque municipal e cavou um buraco no
qual enterrou o Tristício. Surpreendentemente, ele começou a fazer
laços de amizade com os outros participantes da pesquisa e com a
equipe de trabalho envolvida no estudo. A felicidade, enfim, havia
lhe tocado.
Uma
amizade entre nós começou a se formar. Jurei a mim mesmo que jamais
contaria a ele sobre o episódio em que manipulei o experimento para
favorecê-lo. Não queria reconhecimento nem gratidão, pois naquela
época pensava ter feito a coisa certa e salvado a vida daquele homem
que já fora tão infeliz. Vi a vida de Felício mudar completamente,
pois passamos a frequentar a casa um do outro e a correr na pista de
atletismo da Universidade nos finais de semana. Ele fez novas
amizades, recuperou os antigos amigos e ganhou uma movimentadíssima
vida social. Sempre tinha uma palavra motivadora e uma alegria
contagiante para consolar os mais acabrunhados. Não havia festa para
a qual não fosse convidado, pois a sua presença era certeza de
sucesso. Não havia desânimo em qualquer ambiente em que as pessoas
estivessem reunidas com ele.
A
aposentadoria por invalidez, concedida em razão do diagnosticado
quadro de depressão severa, foi revogada. O perito, abismado,
constatou que a doença tinha encontrado uma solução, portanto
Felício perderia o benefício concedido pelo governo e teria que
retornar ao rotineiro trabalho no banco. Dessa decisão, ele riu. Com
muita felicidade, pediu demissão da instituição financeira que foi
o seu ganha-pão por mais de dez anos. Daquele momento em diante,
Felício decidiu que compartilharia a sua boa fortuna com os demais.
Tornou-se palestrante. Ensinava como ser feliz e a ter uma atitude
positiva perante a vida. Frequentei algumas de suas exposições e
percebi a empolgação do público que o acompanhava. Cada hora
falada era um sucesso.
Uma
situação curiosa aconteceu numa dessas ocasiões quando a ex-mulher
de Felício apareceu em uma de suas palestras. Ela estava grávida de
um ex-namorado que a havia abandonado, passava por dificuldades
financeiras e tinha medo de viver. Felício a aceitou de volta e,
sorridente, afirmou que seria muito bom ter uma criança em casa.
Duas semanas depois do reatamento dessa relação, pela primeira vez
ouvi uma reclamação desse Felício feliz, mas foi algo estranho,
pois deveria ser um lamento e soou como uma queixa contente. Na
ocasião, havia morrido o cachorro vira-lata de uma senhora muito
idosa, vizinha de Felício, uma mulher doente que tinha no animal o
seu grande companheiro. A tristeza dela era cortante, no entanto,
mesmo que Felício gostasse muito do cão e se apiedasse da velha
senhora, ele não sentia nenhum resquício de pesar. Ao tentar
conversar com a mulher, os seus dentes à mostra num grande sorriso
tinham o aspecto de uma ofensa. Mesmo ao ser enxotado da casa da
desolada senhora, ele sentia uma desmedida felicidade. Ao me relatar
esses acontecimentos, Felício tinha compreensão de que aquele era
um momento de recolhimento e esmorecimento, embora continuasse a
sentir um vigor de felicidade incessante.
Passamos
a conversar muito sobre a felicidade constante de Felício toda vez
que nos encontrávamos e sempre dávamos muitas risadas nessas
ocasiões. Lembro de ter perdido o ar três vezes e de sentir uma dor
intensa no ventre de tanto rir após uma tarde em que nos reunimos.
Apesar dessa aparente tranquilidade, algo o incomodava e ele nem
mesmo conseguia expressar corretamente. Sugeri que voltasse ao Centro
Médico da Universidade para conversar com a Dra. Letícia, afinal
ela estava finalizando o artigo com os resultados da pesquisa. Na
manhã seguinte, a minha supervisora explicou a Felício que ele
havia sofrido um efeito colateral da medicação, algo que afetaria
apenas 0,01% das pessoas tratadas com a nova droga. O organismo de
Felício havia estabelecido ligações químicas que lhe garantiam a
felicidade para sempre. A Dra. Letícia agradeceu muitíssimo a
participação dele no experimento, pois foi em razão desse ocorrido
que o medicamento teria seu poder de ação reduzido em 90%. Essa foi
a explicação que ela deu a Felício, mas eu sabia que essa
diminuição na efetividade também tinha outra razão de ser: o
laboratório que financiava a pesquisa não queria vender uma droga
que tivesse um efeito tão permanente com uma quantidade reduzida de
doses, por isso exigia que o produto fosse fabricado de modo que
fosse necessário o consumo constante de seu dependente. Evitei dizer
isso a Felício, primeiramente porque não queria expor a minha
chefe, mas também porque pouca influência causaria nele, uma vez
que não abalaria a sua felicidade permanente.
Os
dias foram passando e Felício sentia um incômodo que não se
sustentava por causa de seu constante contentamento. Comecei a
perceber que tanta felicidade afetava o seu pensamento, pois era como
se ele não conseguisse completar um posicionamento crítico, porque
isso abalava a sua predisposição a ser feliz. Num instante fugidio
de lucidez, Felício me confessou que temia ser tomado por um bobo
alegre e nada mais. Entretanto, logo em seguida, a sua felicidade
contagiante tomou conta do ambiente e qualquer reflexão foi
esquecida em meio à animada conversa que tivemos.
Meses
depois, percebi que havia algo de muito errado com Felício.
Tragicamente, um dos diques que continha as águas do rio que passa
por nossa cidade se rompeu. Nessa catástrofe, três bairros foram
alagados, o que ocasionou mais de uma centena de mortos e milhares de
desabrigados e desalojados. As atenções de todo o país estiveram
voltadas à nossa cidade nessa ocasião, sendo que campanhas de
doações de material de construção, alimentos e agasalhos seguiram
por até um ano após o funesto acontecimento. Mas, no período em
que as águas invadiram a malha urbana, todos os locais empreenderam
esforços para auxiliar os sobreviventes. A população chorava os
seus mortos e a tristeza foi a tônica por muito tempo depois. As
rádios da cidade pararam de tocar músicas nas suas programações,
pois entenderam que não havia nenhuma satisfação para dançar. Foi
nesse cenário da tragédia que se levantou Felício com a ideia de
despejar ânimo nos seus conterrâneos. Suas palavras de motivação
seguidas de um enorme sorriso foram motivo para todos os tipos de
acusações de desrespeito e insensibilidade. Houve quem propusesse
ações de linchamento e exílio para aquele que se mostrava tão
feliz em hora tão imprópria. Felício teve que se retirar do local
para que não acabasse morto por aquelas pessoas tão tristes.
Fiquei
uma semana sem saber notícias do meu sempre contente amigo. Depois
fui informado por sua esposa que ela o havia deixado trancado em casa
e sem acesso ao telefone a fim de preservar a integridade física do
marido. Quando apareci para fazer uma visita, Felício me convidou
para que fôssemos a um parque de diversões numa cidade vizinha.
Confesso que julguei inusitado aquele convite, mas aceitei porque
estava preocupado com a condição dele. Por vezes, pensei que tanta
felicidade pudesse levá-lo à loucura. E eu seria o responsável por
isso? Se ele tivesse sido o número 13 e não o 14, nada disso teria
acontecido. Movido por um sentimento de culpa, acompanhei Felício
até o grande espaço de divertimento. No caminho, ele falou que a
morte, afinal, não deveria ser algo tão triste assim. Eu não sabia
se era uma piada, mas me deixei contagiar pelas risadas que
acompanhavam as histórias engraçadas que vieram a seguir.
Ao
chegarmos ao parque de diversões, Felício insistiu que fôssemos
diretamente para a montanha-russa. Ele sentou-se no primeiro carrinho
ao lado de um senhor idoso de aparência bastante soturna,
aparentemente um militar aposentado, que não parecia estar no parque
para se divertir. Eu me acomodei na parte subsequente do comboio ao
lado de uma pré-adolescente de ar bastante amedrontado. Ainda tentei
lhe passar alguma segurança, mesmo que meus pensamentos afirmassem
que não há segurança alguma na vida, não há garantias, apenas
imprecisão. Quando o conjunto começou a se mover, Felício gritava
de maneira entusiasmada como se nunca tivesse se sentido tão
venturoso. Após a primeira curva, percebi que Felício desengatou o
cinto de segurança e tentou ficar em pé no carrinho. Foi
arremessado a uma grande distância e seu corpo bateu violentamente
no chão. Naquele momento entendi que Felício havia morrido se
divertindo. Ele escolhera morrer feliz.
Conto revisado e republicado em 04/10/2014.
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