Mais uma mesa se esvaziava no bar. O garçom, tão logo
recolheu o pagamento da conta, tratou de limpar a mesa, retirar copos, pratos,
guardanapos e condimentos que compunham a imagem do abandono. Outro funcionário
se aproximou com uma vassoura e fez a limpeza no espaço livre. As cadeiras
viradas foram colocadas sobre a mesa, o que pareceu, para Silvério, uma coroa
da rainha da Pérsia.
Como é a coroa da rainha da Pérsia, quis saber Barbosa.
Onde você viu isso?
Palito não disse nada que os outros pudessem entender.
Irra, iurra, airã, foi o mais próximo que conseguiram apreender do que falou o
outro. Ele era o que estava mais tonto dos três após a sétima rodada de cerveja
no bar. Mas, vocês não sabem nada mesmo, tentando consertar a confusa fala
anterior.
Quem é a rainha da Pérsia, Barbosa se dirigia diretamente
para Silvério.
Eu vi num livro de História, tentava explicar. A coroa
parecia essa mesa com cadeiras de perna para cima.
Quem usaria uma coroa dessas, Barbosa parecia inconformado.
Só um rei muquirana daria uma coisa horrorosa dessas para a sua rainha.
Irã, completou Palito. Vocês não sabem nada. A Pérsia é o
Irã.
A madrugada fria esvaziava o bar. As mulheres
acompanhadas saíam abraçadas aos seus namorados, enquanto as mesas apenas com
homens resistiam ao horário e ao clima gélido. Apenas três grupos permaneciam
no local, além da equipe de trabalho. Pela mesa deles já tinham sido servidas
duas porções de aipim frito, cebolas tostadas e, naturalmente, as bebidas. As
cervejas artesanais produzidas em Santa Catarina eram a pedida da vez, uma moda
entre os estudantes de Administração desde que Barbosa tinha ido à Oktoberfest
de Blumenau e trazido essa tendência para a sua turma.
É uma barata, perguntou Silvério apontando para o chão,
próximo a outra mesa que acomodava dois pares de cadeiras viradas.
Não, é uma daquelas coisas que as mulheres usam no
cabelo, arriscou Barbosa enquanto apertava os olhos na tentativa de enxergar
melhor.
Acho que é uma barata, insistiu o outro.
É o Sancho, do livro, acrescentou vagamente Palito. As
palavras já saíam arrastadas, como se houvesse dois tempos, aquele contínuo e
outro intermitente à espera dos ébrios.
O quê, em uníssono indagaram os outros dois.
Do Kafka, o livro do Kafka, explicava Palito. O Sancho é
a barata do Kafka.
Não é Sancho o nome dele, corrigia Barbosa. Sancho é o
companheiro do Dom Quixote. Como é o nome da barata, Silvério?
Desde quando barata tem nome, se surpreendeu o indagado.
Tem uma barata no chão. Só não mato ela, porque já estou vendo duas e não sei
se é a irmã da outra ou se é um holograma de teletransporte.
Vocês estão muito bêbados, riu Palito ao perceber que a
sua embriaguez não era solitária.
A barata tem um nome sim, Barbosa ainda tentava buscar na
lembrança encharcada. Também tem um S no nome, mas não é Sancho. É parecido com
isso. Sandro, Sanha, Samba, Samsa. É isso! Gregor Samsa. Samsa e não Sancho é o
nome da barata do Kafka.
Sim, é isso mesmo, Gregor Samsa, confirmou Palito. O
sujeito da fetamefo..., metefer... metafo... daquela coisa estranha que
aconteceu. Uma palavra como metamorfose já era um esforço muito grande para o
cérebro alcoolizado daquele inexato falante.
Sim, é essa palavra que o narrador usou que eu queria
dizer, me interrompeu Palito.
Qual narrador, espantou-se Silvério com uma expressão que
o fez fechar a cara e dar um solavanco no próprio pescoço para trás.
Palito, por favor, não interfira na narrativa. Enquanto
este baixou a cabeça e olhava para as próprias mãos, os outros fitavam o objeto
no chão. Para um, apenas um ser vivo feito para ser esmagado sob a sola de um
sapato, para o outro, um acessório feminino, mas ninguém tinha mais certeza de
coisa alguma, exceto do nome do inseto, que, criteriosamente, nem era uma
barata, e ilustrava a célebre novela de Kafka. A atenção deles foi brevemente
desviada pelo arrastar de cadeiras ao redor de mais uma mesa que se esvaziava.
Restando apenas duas ocupadas, firmaram um pacto de que seriam os últimos a
sair do bar. Pediram a oitava rodada de cerveja.
É o Gregor Samsa, perguntou Silvério ao garçom.
Desculpe, senhor, respondeu sem entender coisa alguma.
Não é nada, emendou Barbosa. Não pergunta para o garçom.
Vai acabar com a graça.
Foi a Clarice quem comeu, de repente, Palito saía de seu
silêncio momentâneo.
Quem comeu a Clarissa, perguntou espantado Silvério. A
gordinha de dentes tortos da nossa sala? Aquela que está sempre segurando vela
para a Margarete e o Isaac?
Não é essa Clarissa, corrigiu Palito. É a Clarice que
comeu o Gregor Samsa.
Agora você me confundiu, disse Barbosa. Explique essa
história, Palito.
No livro, a Clarice come o Gregor Samsa porque é um
antipecado.
Não foi a Clarice Lispector quem comeu o Gregor Samsa,
corrigiu Barbosa.
Está na biografia dela, argumentou Palito. Minha
ex-namorada tinha todos os livros dela e me contou essa história. A mulher
estava limpando um quarto, viu uma barata igual a essa que está aí no chão e
matou o bicho. Depois, ficou com culpa e comeu o inseto.
Palito, você está confundindo tudo, insistiu Barbosa.
Vai por ele, Palito. A mãe do Barbosa é professora de
literatura e fazia ele ler essas escatologias, aconselhava Silvério.
Essa história foi escrita pela Clarisse Lispector, enfatizava
Barbosa. Essa mulher, que não era a autora, comeu o Gregor Samsa. Aliás, nem
era a barata do Kafka, era uma barata qualquer. Estou tentando lembrar o nome
do livro.
Eu acho que foi a própria Clarice que comeu o Kafka, riu
Palito.
Todos riram do deboche. A primeira saideira? Todos
concordaram. Silvério lembrou do pacto: seriam os últimos a deixar o bar. Uma
cadeira se movimentou na outra mesa. Os três olharam com uma expectativa de
triunfo. Dos cinco sujeitos que ocupavam a mesa rival, apenas um se levantou
apressadamente em direção ao banheiro. Alarme falso.
Tão logo o garçom os serviu, Barbosa teve um sobressalto.
Está vindo, estou lembrando. O título do livro é uma
paixão segundo, segundo... está na ponta da língua, mas não vem.
Deixe eu ver essa língua, galhofou Silvério.
Barbosa abriu a boca e esticou o órgão muscular o máximo
que pôde. Chegou a tocar o próprio queixo, mas recolheu a língua ao sentir
ânsia de vômito.
Que bafo horroroso, reclamou Silvério, enquanto balançava
as mãos na esperança de respirar um ar mais limpo.
Não vá vomitar na Clarice e no Kafka, retrucou Palito.
Tenha respeito.
Todos riram da tirada espontânea.
Lembrei, exclamou Barbosa. O título é A paixão segundo
FH.
Éfe Agá, questionou Silvério. Que merda de nome é esse?
Fernando Henrique? O ex-presidente comia barata?
Deve ser por isso que nunca mais se elegeu, completou
Palito.
Não é o ex-presidente, consertou Barbosa. FH é o nome da personagem
do livro da Clarice Lispector, a mulher que tinha essa peculiaridade
gastronômica.
Seja pelo confusão provocada pelo álcool ou porque não eram
muito conhecedores de literatura, os três amigos continuaram a chamar a
personagem G.H., da obra “A paixão segundo G.H.”, de FH por mais alguns minutos.
É G.H., como disse o narrador, mais uma vez Palito
interrompeu a minha narrativa.
Palito, por favor, mantenha-se no lado narrado do texto,
deixe que eu cuido sozinho da narrativa.
Enquanto os amigos tentavam dar algum sentido para as
frases cada vez mais desconexas que emitiam, notaram que os cinco ocupantes da
outra mesa se levantavam de suas cadeiras. Todos os olhos se viraram naquela
direção para saborear o gosto pela vitória. Palito equilibrou a cadeira sobre
as duas pernas posteriores, levantando as da frente. Acabou tombando para trás
e caindo desacordado. Silvério e Barbosa se levantaram para acudir o amigo. Na
tentativa de levantar Palito, eles se aproximaram do objeto inerte sobre o
chão, que tanto rendera na discussão desta noite.
Eu acho que é uma barata, disse Silvério.
Não, é uma daquelas coisas que as mulheres usam no
cabelo, retrucou Barbosa.
Comentários
Postar um comentário