"Sinisdestra" é um livro de contos interligados por um tema comum a todos.
2.
O
jato particular cruzava o céu azulado, no qual esparsas nuvens seguiam em direção
contrária a dos ocupantes da máquina voadora. Visibilidade perfeita para uma
viagem aérea. Ainda era cedo, uma manhã calorenta. A burocracia e o rigoroso
controle militar no aeroporto os fez chegar com muita antecedência para o
embarque. Embora eles tivessem garantias do governo, a prudência era o que
imperava nas condições políticas vigentes. Dentro do pequeno avião, o comandante
e o copiloto debatiam a reportagem de capa do periódico a respeito da anexação
do país pelas forças armadas estrangeiras. Enquanto os homens cruzavam os
braços, o trabalho era feito pelo piloto automático.
Confortavelmente
acomodados no avião estão os proprietários do periódico que levantava as
divergências na sala de comando. Mais verdadeiro seria dizer que nos céus rumo
à Capital estavam os responsáveis pelo maior conglomerado de mídia do país.
Além do jornal, os canais de televisão, as revistas variadas, o portal na
internet e as estações de rádio completavam o patrimônio da família Fluvial. Em
idade avançada, o líder da corporação, Gilberto Fluvial, viaja acompanhado de
seu herdeiro, Gilberto Fluvial Neto, estudante (em estado de suspensão) de jornalismo.
Você
é muito novo, mas precisa aprender rápido quando é a hora de agir, afirmava o
avô. Eu imaginaria que você tomaria partido dessas coisas daqui a três ou
quatro anos. Essa guerra, a morte do meu filho, do seu pai, precipitou-nos a
essa condição. Eu não sei por quanto tempo ainda vou viver, então não quero que
um idiota ponha todo o patrimônio da família a perder. É por isso que vou te
ensinar. Preste atenção, porque comigo você mais aprender mais do que na
faculdade, meu neto.
Esse
deveria ser o ano da minha formatura, lamentou o neto. O exército fechou a
universidade e sem aulas ninguém pode estudar. Eu era o presidente da comissão
de formatura e já estava tudo planejado para a maior festança da cidade.
Esqueça
essa festa, irritadamente disse o avô. O importante é o porquê de estarmos
aqui. Hoje você vai conhecer um homem muito importante da política nacional,
por isso é imperioso ter boa relação com ele e com os membros do partido.
Conquiste-o e as portas lhe serão abertas. Conforme combinamos, o que você vai
dizer quando encontra-lo?
Sua
Excelência, Senhor Ministro João Remocaim, é um imenso prazer conhecê-lo, falou
atabalhoadamente o neto.
É
Vossa Excelência, Vossa Excelência, corrigiu Gilberto Fluvial. Se usa o pronome
Vossa Excelência com quem se fala. Sua Excelência, você usa quando se fala de
alguém. E ainda quer se formar na faculdade.
Peço
desculpas, timidamente acrescentou o neto. Vô, então, me fale um pouco mais
sobre Vossa Excelência ou Sua Excelência. Vossa ou Sua? Sobre o ministro.
Agora
é Sua, porque vamos falar sobre ele. Aprenda isso até desembarcarmos, já dizia
resignado o avô. Conheci pessoalmente João Remocaim quando ele tomou posse como
deputado regional, deveria ter uns trinta anos. Ele começou muito cedo na
carreira política. Já tinha sido eleito vereador duas vezes, na segunda foi o
presidente da câmara e assumiu como prefeito depois da vacância no poder, após
as mortes dos administradores municipais. Na eleição seguinte, ele teve a
maioria dos votos e foi conduzido para um novo mandato. Estava fazendo o seu
nome. Era de família rica e influente nas terras dele, conseguiu costurar boas
relações sempre com quem estava no poder e pouco se indispunha com a oposição.
Com o dinheiro que tinha, sabia amansar o povo também. Em seguida foi eleito
deputado regional e teve que sair da terra dele. Morando em cidade grande,
rapidamente começou a desfilar no tabuleiro do jogo político. E o diabo tem
jeito para a coisa! Não é à toa que ele é o Ministro da Integração hoje. Até
com os invasores, ele senta para confraternizar.
Esse
João Remocaim deveria ser nomeado Ministro da “Entregação”, porque está
entregando o país ao inimigo, ousou mencionar o neto.
Nunca
mais fale assim de um aliado, ouviu, sentenciou enfaticamente o avô. Nossa
empresa tem um compromisso com João Remocaim e com os seus interesses, que são
os nossos também. Aprenda de uma vez que a vida é movimento. O bambu balança
para a direita, para a esquerda, vai para frente e para trás, mas é flexível,
maleável e permanece em pé. As nações se fazem e se desfazem, foi assim com os
romanos, com os persas. A população é que se adapta e permanece. Os bávaros e
os prussianos hoje têm orgulho de serem alemães, mesmo que seus ancestrais
defendessem seus reinados com o próprio sangue. Meu neto, não se apegue aos
derrotados. Nosso país é fraco, a guerra mostrou isso. Se você quer ser forte,
seja amigo dos fortes. Se o povo precisa ser convencido que foi melhor ser
anexado por uma cultura superior, dê essas notícias a eles. Valorize a cultura
do estrangeiro, exponha as convicções e o modo de viver deles como se fosse uma
alternativa melhor à nossa. Se eles nos invadem e quebram nossas tradições, mostre
ao povo o quanto somos antiquados, como a dominação é na verdade uma
libertação. Seja amigo dos poderosos e seja um também, meu neto. Nunca se
esqueça de que vivemos um darwinismo político e social, no qual o mais adaptado
sobrevive. Se adapte, rapaz. A vida é uma só e você precisa viver bem. Quem não
sabe viver, que viva mal. Pense em você, é o que eu lhe digo, porque a vida se
faz em sociedade, mas se vive sozinho.
Gilberto
Fluvial Neto balança lentamente a cabeça para frente e para trás. Parece
pensativo. Alguma coisa mudou na sua forma de ver o mundo.
Avô
e neto desembarcam no aeroporto da Capital. Gilberto Fluvial segura firmemente
a maleta cheia de notas de dinheiro nos valores de cem e de quinhentos para o
encontro com o ministro. Depois de passarem pela fiscalização do exército
invasor, seguem de automóvel para o Ministério da Integração. Tão logo são
anunciados pela secretária, os dois entram no gabinete ministerial. O neto abre
um sorriso e diz:
Vossa
Excelência, Senhor Ministro João Remocaim, é um imenso prazer conhecê-lo.
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