"Sinisdestra" é um livro de contos interligados por um tema comum a todos.
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A boa notícia é que Pascoal está
vivo, respondeu Emiliana. Ele conseguiu atravessar a fronteira e está exilado
em algum país do norte que ele achou prudente não revelar agora. A notícia ruim
é que ocorreu uma explosão no aeroporto antes da decolagem da aeronave, que
levava Pascoal e outros deputados, o que o deixou temporariamente surdo. Os
médicos ainda não sabem se ele irá recuperar a audição ou se o dano será
permanente, acrescentou Emiliana chorando novamente.
O-o-obrigado por
tudo, senhor ministro. O-o quê? O senhor quer me ver? Qua-quando?
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5.
A carta apertada contra o peito saltava acompanhando os
soluços e o choro que a leitura provocou. O pranto persistente encontrou um
instante de alívio no abraço solidário. As duas mulheres ofereciam conforto
mútuo, enquanto tentavam sobreviver às incertezas e ao medo do destino
desconhecido. A guerra aproximara filha e mãe depois de tantos anos de
distanciamento, não apenas geográfico, mas também emocional.
Boas ou más notícias,
perguntava Miriam, a mãe.
A mãe apertou o abraço, acariciando os curtos cabelos
loiros da cabeça repousada em seu ombro como fazia quando a filha era uma
menina. Aquele era um momento para que poucas palavras fossem ditas, por isso o
silêncio prolongado que apenas era interrompido pelo vento a balançar as
persianas da janela, causando um ruído de metal sendo arrastado em curtos
intervalos, e do velho relógio de madeira com ponteiros e marcadores de ouro a
tiquetaquear ininterruptamente.
Eu o amo, mãe, irrompeu subitamente Emiliana soltando-se
dos braços de sua mãe. Eu o quero surdo do mesmo jeito. Pascoal precisa de mim
e eu estou aqui, escondida, protegida, e ele está só e ferido. Eu o quero
surdo, cego, mudo, com ou sem pernas, mutilado ou enlouquecido. Não quero ser
viúva, não posso viver sem Pascoal, soluçava pranteado cada vez mais.
A
resposta de Miriam veio mais uma vez em forma de abraço silencioso. Ela sempre
foi adepta do contato físico, nunca se achou boa com as palavras, detestava
discursos e aparições em grupo. O finado marido, pai de Emiliana, era um
sujeito bom em manipular os vocábulos. Formavam um casal bem definido na lida
com os filhos, pois Miriam era tátil e o marido, aconselhador e disciplinador.
Há quase dez anos morando longe de Emiliana e Pascoal, Miriam pouco conseguia
conversar com a filha. As ligações telefônicas eram curtas e mais pareciam
solilóquios da filha intercambiados por curtos sins, nãos, ahans e uhuns. A
tecnologia não lhe disponibilizava a possibilidade de se comunicar com o toque
das mãos e de um abraço carinhoso. Mais dificultada ainda era a relação porque
a sogra e o genro não mantinham uma bom relacionamento. Pascoal, que era um congressista,
estava envolvido em escândalos de corrupção e acusações sérias que envolviam
homicídios. Miriam, uma mulher de valores tradicionais, obtusa, mas honesta e
íntegra, discordava dos posicionamentos e das atitudes do genro. Com suas
poucas palavras, se limitava a dizer que não ia com a cara dele, sem fornecer
maiores explicações. Quando questionada o porquê, apenas repetia a frase
anterior duas ou três vezes. Mais não lhe era possível arrancar.
Felizmente,
Pascoal conseguiu chegar ao exílio, se conformava Emiliana, um pouco mais
calma. Vou poder contar aos nossos filhos que o papai está fazendo uma longa
viagem e que vai voltar para casa quando tiver terminado o seu trabalho. Acho
que vou fazer um bolo para eles. Tenho arrepios só de pensar na possibilidade
de os ludibriar com uma lorota de que o pai deles teria virado uma estrelinha
no céu. Na pior das hipóteses, vão-se os tímpanos, mas fica o marido e pai de
família – os olhos novamente se encheram de lágrimas.
Foi
João Remocaim quem auxiliou na fuga, disse brevemente Miriam.
Sim,
e a senhora não sabe como eu me sinto. É como se eu fosse grata ao diabo, declarou
Emiliana. Maldita guerra e malditos governantes que temos. Como historiadora e
conhecedora das tramas da história deste país, me sinto muito mal de dever
gratidão a João Remocaim, um homem que nunca teve motivação política além de
defender os seus próprios interesses. Desde que ele ingressou nessa carreira,
sempre esteve no poder, mesmo com a alternância de governo entre os partidos de
direita e centro-esquerda. Ele nunca precisou escolher a ideologia que
defenderia, porque para João Remocaim apenas existem dois lados: o que tem o
poder e o que não tem. Ele sempre esteve alinhado com o primeiro, mesmo que
para isso precisasse costurar manobras políticas inacreditáveis e ilógicas. Mesmo
tripudiando da inteligência popular, ele nunca perdeu uma eleição e conseguiu
se eleger consecutivamente para os cargos de vereador por duas vezes, prefeito
em dois mandatos e meio, deputado regional, depois nacional por mais três
vezes, senador em três oportunidades, vice-presidente da república, além de ser
cinco vezes ministro de pastas diferentes em governos oposicionistas entre si
na eterna luta eleitoral entre direita e centro-esquerda para comandar as
atenções em todos os pleitos. Agora, o sujeito atingiu o cume da sua fixação no
poder ao exercer a função de ministro da Integração no governo dos nossos
invasores. Nessa hora até consigo imaginar João Remocaim bebendo e fumando
junto à corja que nos submeteu a essa humilhante anexação. Pascoal é muito
diferente dele, porque, por mais que lancem acusações contra ele, nunca lhe faltou
defesa à sua ideologia. Meu marido é um homem de convicções políticas, um
apaixonado por sua visão de mundo, alguém que não muda de posicionamento para
se vincular ao poder enquanto finge esquecer o próprio passado.
Miriam,
sem saber o que dizer, segurou a mão da filha. Emiliana já entendia que aquela
era a maneira da mãe demonstrar a sua contrariedade.
Eu
sei, mãe, que ele foi fundamental para a fuga do meu marido; no entanto, não
consigo achá-lo menos crápula por isso. Eu estudei toda a história desse homem
para saber o tipo de pessoa que ele é. Por isso, sei que a fuga de Pascoal e de
outros congressistas não foi um gesto de solidariedade com seus compatriotas,
mas uma manobra de interesse político. Não se esqueça que três senadores e oito
deputados foram denunciados, atraiçoados seria melhor dizer, e não tiveram a
mesma chance de fugir para o exterior. Todos apresentavam alguma divergência
com João Remocaim. Os poucos jornalistas que se arriscam a cobrir a situação do
país com autonomia afirmam que esses parlamentares estão sendo mantidos
trancafiados em penitenciárias sem direito a nenhum auxílio jurídico. Então,
por mais que eu sinta asco por esse homem, ao mesmo tempo tenho uma enorme
gratidão. Sinto como se estivesse atravessando o inferno para levar um buquê de
flores ao próprio demônio.
As
duas mulheres ficaram novamente em silêncio. Seus olhos estavam perdidos
acompanhando a persiana que tremelicava com as rajadas de vento. O aparente
sossego foi interrompido com o telefone a tocar. Emiliana correu até o aparelho
na esperança de que fosse Pascoal. Em sua ansiedade, não lembrou que o marido
não podia escutar as suas palavras, por isso não faria sentido realizar uma
ligação telefônica. Do outro lado da linha, quem se identificou foi a
secretária do ministro João Remocaim, que logo assumiu a chamada.
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