"Sinisdestra" é um livro de contos interligados por um tema comum a todos.
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7.
Além dos costumeiros objetos, a cozinha do apartamento
duplex – uma cobertura com duas suítes, escritório e um quarto para hóspedes –
tinha outra figura inanimada a compor a sua paisagem. Tal como a batedeira, o
liquidificador, o fogão, o forno de micro-ondas, o refrigerador, a cafeteira,
Jussara permanecia inerte, em pé, com os braços cruzados e com os olhos mirando
a porta que dava entrada àquele recinto. Vestindo o seu uniforme de trabalho,
que consistia de uma calça preta de abrigo que lhe dava maior possibilidade de
realizar movimentos como os de abaixar e de levantar, uma camiseta verde-musgo
sob um avental cinzento, e luvas de borracha amareladas, a mulher ainda sentia
o cheiro da água sanitária com que limpou o piso da cozinha no dia anterior,
depois que uma das crianças derrubou o prato de sopa de letrinhas durante o
almoço.
O
que são esses braços cruzados, quis saber Lucília, que despertava faminta. A
mesa não está posta? E o café da manhã?
Bom
dia, dona Lucília, respondeu Jussara. Preciso conversar com a senhora.
A
patroa, uma senhora de sessenta e seis anos, professora aposentada de ciências
humanas por uma universidade pública, esposa de um rico industriário local, deu
um passo para trás ao mesmo tempo que fez uma careta que lhe contorceu as faces
enrugadas. Só pode estar grávida, pensou. Essa era a sua preocupação: mulheres
jovens sempre podiam engravidar. Quanto mais pobres, mais férteis.
Não
me diga que você esperando..., Lucília deixava a sentença incompleta,
prolongando a última sílaba do verbo.
Dona
Lucília, estou esperando que a senhora me pague, falou diretamente Jussara, a
quem a objetividade nunca faltou.
A
patroa riu contrariada da maneira como a empregada doméstica fazia a sua
exigência. Pensou em recorrer a termos como petulância, atrevimento, audácia,
desplante, ousadia, mas preferiu arriscar-se a perguntar qual o significado
daquele ato de rebeldia durante o horário em que deveria ser servido o café da
manhã. Quem é que discute de barriga vazia e quando ainda mal está desperto?
Jussara, no entanto, foi firme em sua reivindicação. Um mês e meio de salários
atrasados era o suficiente para metê-la em apuros financeiros e comprometer a
frágil condição econômica da sua família.
Eu
e meu marido vamos resolver esse seu probleminha, amainou Lucília, como se a
exigência fosse um capricho da empregada.
Dona
Lucília, a senhora sabe o quanto gosto de trabalhar para a sua família, mas eu
tenho os meus direitos como trabalhadora, reclamou Jussara.
Enquanto
se queixava do quanto é difícil encontrar boas empregadas domésticas, por serem
todas ingratas, que nunca dão valor à acolhida e o carinho com que são
recebidas no interior de uma família tradicional, os olhos de Lucília se
enchiam de lágrimas. Nunca a mãe ou a avó dela precisaram discutir com a classe
subalterna, nunca pensou que viveria para se encontrar nessa situação.
Antigamente, um empregado sabia qual era o seu lugar.
Dona
Lucília, eu trabalhei todo o período acordado no meu contrato de trabalho, por
isso tenho que receber pelo serviço que prestei, argumentava Jussara. Estou há
um mês e meio trabalhando sem que meus vencimentos sejam pagos. Isso já é o
suficiente para pedir a extinção do vínculo empregatício e uma indenização
trabalhista. Não estamos em um regime de escravidão. Por respeito, chamo a
senhora de Dona, mas eu sou uma mulher livre. Minha dona, a senhora não é. Além
disso, o meu vale-transporte não foi pago, por isso, estou tendo que pagar para
trabalhar. São dois ônibus para ir e mais dois para voltar, Dona Lucília, não
posso ter mais essa despesa sem receber um tostão.
Você
está metida com o sindicato, quis saber intempestivamente a patroa. Só faltava
uma anarquista, uma comunista dentro da minha casa. Eu sempre a tratei tão bem,
e agora sou ameaçada com um processo, uma indenização... você pensa que está
onde? Isto aqui não é a casa da sua avó, menina. Você ainda tem um emprego,
então fique satisfeita com a sua sorte, porque tem muita jovem melhor do que
você querendo trabalhar na casa de uma família tão tradicional quanto a minha.
Dona
Lucília, estou apenas pedindo o que é meu por direito, continuou a empregada.
Quando a senhora me contratou, concordou em pagar esse salário que me deve. A
senhora assinou a minha carteira profissional conforme a lei trabalhista e está
sujeita à legislação que protege o trabalhador.
E
quem protege o empregador, exaltava-se cada vez mais a patroa. Essas leis
trabalhistas só servem para dar desaforo à gentinha. Lembro muito bem quando
foi votada e aprovada essa lei daquele vigarista, o João Remocaim. Coisa de um
populista demagogo, que não larga o poder há mais de quarenta anos. Quando era
ministro do governo de direita, defendia os latifundiários e os empresários,
depois que a centro-esquerda assumiu a presidência, o sujeito começou a falar
em realização de reforma agrária e na implementação de leis para prejudicar os
patrões e favorecer os empregados. Isso é coisa de homem de duas caras, esse
tem uma face para Deus e outra para o diabo.
Dona
Lucília, o ministro João Remocaim foi muito bom para os pobres deste país,
defendia Jussara. A minha família nunca teve nada, mas hoje o meu pai é
aposentado porque o ministro regularizou a situação dos pobres que trabalhavam
para patrões que não registravam nem pagavam os direitos dos seus empregados. A
minha mãe só teve direito a férias depois de mais de trinta anos de esforço e
serviço após a aprovação da lei trabalhista do ministro. Os meus cinco irmãos e
minhas três irmãs podem comprar uma ceia melhor no final do ano, um franguinho
mais gordo, robusto, para os filhos, esposas ou maridos porque têm direito ao
décimo-terceiro salário depois de trabalhar o ano todo. O ministro João
Remocaim pode ter os seus defeitos, mas foi o paizinho dos necessitados.
Tudo
para ganhar votos, cortou Lucília abruptamente. Esse crápula só quer ganhar
votos às custas dos miseráveis. Quando a direita voltou para o poder e ele
assumiu outro ministério, dava entrevistas dizendo que era preciso diminuir os
direitos dos trabalhadores, os privilégios que ele mesmo havia criado. O
congresso, na época, não aprovou, porque a esquerda ainda tinha uma maioria mínima
no legislativo, mas o João Remocaim fez uma boa imagem com os direitistas que
retornavam à presidência. É desse modo, manipulando os partidos políticos e os
pobres deste país que ele tem permanecido sempre no governo, independentemente
de quem estiver ocupando a cadeira de presidente.
Dona
Lucília, como fica a questão do meu pagamento, perguntou Jussara.
Vá
pedir aos sindicalistas, reclame ao ministro, vá se queixar nos tribunais, mas
não se esqueça de que o país foi anexado, fomos invadidos, rasgaram a nossa
constituição e os seus direitos trabalhistas estão suspensos, dizia a patroa
com o dedo em riste. O que existe agora é uma regra de boa convivência. Ou se
trabalha dentro dessa regra ou não haverá mais trabalho para você nesta casa. Descruze
esses braços, trabalhe e eu lhe pago no final do mês.
Não
aceito essas condições, Dona Lucília, protestou Jussara.
Impedida
de trocar de roupa, a mulher deixou o apartamento ainda com o uniforme do que
já foi o seu trabalho, após ter sido mandada embora. Dali, convicta em procurar
auxílio, iria diretamente para o endereço do sindicato da sua categoria
profissional, mas antes se deparou com uma cena inesperada quando chegou à
portaria do edifício, tão logo desceu pelo elevador de serviço. Uma equipe com
cinco entregadores carregava um sofá com quatro lugares, uma mesa de jantar,
oito cadeiras, duas poltronas, uma mesa de escritório, duas luminárias, uma
cama infantil e uma pequena adega com sistema de refrigeração, que iriam
decorar os diferentes ambientes do apartamento de Lucília.
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