"Sinisdestra" é um livro de contos interligados por um tema comum a todos.
Você encontra as partes anteriores nas postagens antecedentes.
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12.
Um
gordo mosquito escuro saltitava pelas paredes do quarto realizando
incompreensíveis movimentos de avanço e de recuo sobre a parede branca. Do lado
direito da cama, a esposa dormia com uma máscara facial a lhe cobrir os olhos;
do esquerdo, o ex-desembargador Miguel Martins, destituído de seu cargo após a
ocupação do país e a perda da soberania nacional, se distraía de sua leitura e
fixava o olhar no inseto que vacilava em idas e vindas, aparentemente, indecifráveis
para um observador humano leigo. Habituado a interpretar intenções, formar
conceitos, emitir pareceres, o ex-desembargador buscava a intencionalidade do
mosquito que cada vez mais se aproximava dele. Com um movimento rápido, Miguel
Martins fez do livro que tinha em mãos uma armadilha e apanhou o pequeno animal
dentro do grosso volume. Não se tratava de uma obra qualquer, mas da antiga
constituição nacional. Anulada devido à anexação do país aos invasores, aquela
carta magna era um dos orgulhos deste homem, um dos constituintes, uma figura
central na definição dos direitos dos cidadãos da nação – direitos estes que
estavam subjugados pela opressão militar. Depois de olhar para o lado e
perceber que a mulher não se mexera, permanecia em um sono profundo induzido
por tranquilizantes, ele abriu o livro nas páginas marcadas para ver o que
sobrara do inseto. Justamente na seção que tratava da separação dos poderes
executivo, legislativo e judiciário, uma mancha de sangue circundava o cadáver
esmagado do mosquito. Com nojo da cena visualizada, o ex-desembargador soltou a
obra caduca no chão, a mesma que por muito tempo o orgulhou. A mancha rubra
formada pelo sumo de tantos desconhecidos sobre a distinção dos três poderes
denunciava a corrupção endêmica que se apossara das figuras públicas que
ditavam os rumos do país. A própria assembleia constituinte foi composta por
figuras externas ao poder legislativo, tendo em figuras centrais do executivo e
do judiciário algumas das vozes de comando. Se no texto havia alguma distinção,
o cotidiano político apresentava interferências obscuras movidas por razões
imorais.
Incomodado
por lembranças do passado que costumeiramente o acometiam, desde que havia
perdido o seu importante posto no tribunal supremo da nação, Miguel Martins se
levantou da cama. No banheiro, sentado no vaso sanitário, recordava a sensação
de alívio que sentira quando o poder legislativo aprovou uma lei que criava uma
polícia judiciária com o intuito exclusivo de investigar possíveis
irregularidades no poder judiciário. Como ele era o chefe dessa representação, nenhuma
conduta anormal foi descoberta, com isso o seu crime de sonegação de imposto de
renda jamais sofreu diligências para que fosse revelado. Da mesma forma, ele
fora responsável pelo arquivamento do processo contra João Remocaim, no qual este
era acusado de ter se beneficiado ilicitamente da venda de ações da
recém-privatizada companhia estatal de minérios, negócio que rendera ao
ex-senador a triplicação da sua fortuna. Quando foi cortar um pedaço de papel
higiênico para se limpar, constatou que este estava em falta. Sujo, resolveu
tomar uma ducha. Enquanto se limpava, começou a chorar. Sentia-se traído, abandonado
pelos homens que tanto se beneficiaram da sua influência no judiciário
nacional. Agora, era um desembargador destituído do seu poder, alguém que não
tinha mais nenhuma influência decisória na sociedade, se sentia um ninguém. Acostumara-se
a decidir a vida das pessoas; afastado dessa possibilidade, tinha a sua vaidade
ferida, um dilaceramento do homem que pensava ser. Miguel Martins se
confrontava com a dura realidade de ser importante apenas para aquelas pessoas
que assim o consideravam, e a quem ele afirmava essa importância; porém, para
os governantes e os militares do país invasor, ele não passava de um qualquer,
alguém que se necessário fosse seria removido. Não teve outra atitude o novo
governo, quando extinguiu os três poderes constituídos e fez com que Miguel
Martins perdesse o cargo que exercia no tribunal supremo. Seus olhos estavam
vermelhos, misturando as lágrimas e a água cadente do chuveiro. Maldizendo João
Remocaim, aquele que tivera o privilégio de permanecer em uma boa situação
política, apesar dos revezes, o ex-desembargador culpava o antigo aliado por
não interceder em seu favor. Outro ministro do tribunal supremo havia recebido um
cargo simbólico no novo governo, o que lhe dava algum sentido à vida. Miguel
Martins, que nos últimos quarenta anos sabia apenas julgar, se comparava a um
pássaro que perde as asas.
Secando
o corpo com uma toalha felpuda, ele não lembrava se tinha tomado o remédio antidepressivo.
Tentando forçar a memória, também não conseguia recordar se tinha engolido o
comprimido no dia anterior. Depois de vestir o pijama, foi até o armário de
medicamentos. Tão logo abriu o mobiliário, de lá saiu uma barata. Com o chinelo
na mão, desferiu vários golpes na peça de madeira até que, finalmente, acertasse
o alvo. Raivoso, bateu tantas vezes no inseto, que o exoesqueleto da barata foi
esfacelado, deixando o corpo com uma forma irreconhecível. Além do calçado, suas
mãos também estavam sujas com as entranhas do pequeno animal. Desejou fazer o
mesmo com João Remocaim, queria esmagar o crânio do antigo parceiro de burlas
ao erário da nação. Com o remédio em mãos, ainda não tinha certeza de quando
tinha sido a última vez que havia consumido a medicação, por isso, em uma
decisão de momento, considerando o seu estado alterado, julgou que deveria contrabalançar
a possível falta anterior com uma compensação imediata. Separou três
comprimidos e foi até a cozinha à procura de uma copo d’água. Assim que se serviu
da jarra, jogou todo o líquido no ralo da pia. Já estava velho, não tinha mais
o seu emprego, o destituíram do seu poder, se transformara em mais um a quem
cabia aceitar as decisões de outros sem qualquer influência. Com muitos
pensamentos autodepreciativos, serviu um copo de uísque e a cada gole ingeria
um medicamento lambuzado no líquido viscoso da barata morta. Sozinho na cadeira
estofada em frente à mesa da cozinha, o ex-desembargador bebeu mais quatro
doses antes de ir até o escritório e abrir um armário que ficava
permanentemente fechado. De dentro, tirou um revólver, a mesma arma que usou
quando serviu o exército nacional. Retornou ao quarto e observou a mulher que
dormia. Disse a ela que faria justiça, que ainda era um desembargador, que
faria justiça. Dopada pelos tranquilizantes, a esposa seguiu o sono a que
estava entregue, e não ouviu uma palavra do que foi dito.
Vestindo
o seu pijama e chinelos de dedo, o revólver firmemente seguro na mão direita, ele
saiu pela porta do apartamento e apertou o botão do elevador. Começou a falar
mais alto, ameaçando João Remocaim como se este estivesse presente para ouvir
os impropérios. Ingressou no transporte vertical e desceu na garagem
subterrânea. Eram três andares sob o solo destinados aos automóveis, e Miguel
Martins estava verdadeiramente confuso. Mesmo com a idade avançada, começou a
correr pelo estacionamento à procura do seu carro com a arma apontada para a
frente e elencando diferentes xingamentos ao desafeto. Dois funcionários do
edifício apareceram para pedir que ele se acalmasse, que largasse a arma e que
falasse no idioma local. Tropeçando nas próprias pernas, o ex-desembargador caiu
com o rosto no chão. Os homens que se aproximavam se detiveram quando
perceberam que o velho se virava com dificuldade, mas mantinha a arma na mão
direita. Miguel Martins, mais uma vez, ouviu a linguagem distinta da sua e começou
a perceber o que estava fazendo. Desde que fora destituído do seu cargo no
tribunal supremo, ele e a esposa se exilaram em outro país. Era inútil sair com
um revólver à caça de João Remocaim, pois o político permanecia no país
ocupado. Caindo em si do ridículo que estava passando, uma figura tão distante do
homem que imaginava ser, uma lágrima lhe brotou no olho. Apontou a arma para o
próprio peito e disparou.
As
últimas palavras em um idioma estrangeiro que ouviu foram: decidiu se matar.
Sim, se haviam lhe tirado todo o poder de deliberar a respeito da vida dos outros,
ainda lhe restava a definitiva sentença sobre si mesmo: a condenação a viver ou
a morrer.
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