Sobressaltado, Teodoro acordou com
batidas na porta de sua casa. Ainda tonto após ter bebido o que restava da
garrafa de cachaça, ele olhou o relógio de plástico pendurado na parede e
percebeu os dois ponteiros sobrepostos: indicavam as 2 horas e 10 minutos da
madrugada. Afastando o ralo cobertor de lã para o lado, sentiu o ar frio que
entrava pela janela naquela primeira noite de inverno. Após apoiar os pés no
chão, procurou o par de chinelos que não lembrava onde tinha deixado. Embora a
cabeça dolorida bambeasse como se houvesse uma discordância entre ventos do
leste e ventos do oeste a se movimentar dentro do crânio, Teodoro tateou no
escuro até encontrar o interruptor de luz. No mesmo instante em que a escuridão
se dissipou, ele ouviu novas batidas na porta, dessa vez acompanhadas de uma
voz que anunciava gravemente: é a polícia! Tentando apressar o passo erradio,
vestiu uma calça de abrigo que estava ao lado da cama, compondo um estranho
conjunto com a camiseta suja de tinta que cobria seu tronco. Depois de alguns
passos, acabou por se deparar com o pé esquerdo do chinelo do lado de fora do
quarto. Calçando o pé esquerdo, o outro ainda pisava desnudo sobre o piso
gelado de cimento, e os dedos recolhidos avançavam como se quisessem voltar.
Claudicando com as passadas descompensadas, enfim chegou até a porta. Do lado
de dentro, pediu que o visitante inesperado aguardasse. Não encontrava a chave
para dar entrada a quem chegava, e se sentia confuso com aquela situação. Ouviu
mais uma vez: é a polícia! Encontrou o outro pé do chinelo ao lado da porta. Ao
se abaixar para pegá-lo, perdeu o equilíbrio e caiu sentado no chão frio.
Xingou e riu ao mesmo tempo, começava a ficar nervoso. Pôs no pé o outro
chinelo, e de quatro gritou para quem estava do lado de fora que não conseguia
encontrar a chave. Uma contagem regressiva se iniciou pelo impaciente visitante
que impunha a sua voz com um tom de comando. Teodoro abriu a janela e pediu a
compreensão do policial, pois a chave tinha sumido. Quando fixou o olhar na
autoridade, percebeu que não era uma só pessoa, eram três, ainda que tivesse
bebido, não era o mesmo triplicado, eram diferentes uns dos outros. O primeiro
policial se aproximou e exigiu que a porta lhe fosse aberta. Calma era o que
pedia Teodoro, embora ele mesmo já se enervasse com o que acontecia. Ao voltar
com o corpo para dentro, bateu com a cabeça na janela e encontrou a chave sobre
o parapeito. Empolgado, anunciou a sua descoberta. Ao enfiar o gelado objeto
metálico na fechadura, constatou que havia deixado a porta destrancada na noite
anterior.
Abrindo timidamente a pesada porta
de madeira maciça, Teodoro foi empurrado para trás por um policial alto e gordo
que estufava a farda com seu corpanzil. O delegado de bigode e sobrancelhas
espessas anunciou que já sabia a verdade. O policial loiro de nariz torto
apareceu calado por trás dos demais. Onde estava Inês? Quando a havia visto
pela última vez? Quem mais havia participado? Qual foi a motivação para o
crime? Onde o corpo havia sido escondido? O homem ouviu todas aquelas perguntas
em sequência e demorou para entender o que se passava. Ainda sob efeito da
cachaça, tentava ligar o que as palavras Inês, última, participado, crime e
corpo tinham de nexo nesse interrogatório. Depois de cobrir um rasgo no
estofamento do sofá com uma almofada, Teodoro se sentou e levou a mão sobre os
olhos, como se tapasse um sol ausente, como se pudesse enxergar mais longe do
que a sua condição permitia. O seu silêncio aparvalhado enervou o policial
loiro de nariz torto que gritou com voz autoritária exigindo respostas para as
questões. Como se levasse um solavanco, Teodoro tentava contemplar os três
oficiais com um olhar somente, mas transparecia apenas medo e agitação. Ele
disse não saber o que havia acontecido com Inês, então intercalou negações e
perguntas. Não fui eu, dizia por reflexo, mas nem sabia o que não tinha sido
ele, pois talvez tivesse sido, mas achava que não. Ainda não sabia do que era
acusado, ou investigado, apesar de ter uma vaga noção de que já o acusavam ao
investigar – e o condenavam por um crime que era da sabedoria apenas dos
outros. O delegado de bigode e sobrancelhas espessas apontou o dedo indicador
entre os olhos de Teodoro e refez a pergunta sobre o paradeiro de Inês. Ao
primeiro não sei dito, uma bofetada na cara. Após repetir duas vezes a mesma
coisa, duas novas agressões. Com uma sequência de três não sei, quatro tapas
enrubesceram as faces pardas de Teodoro. Embora fosse semianalfabeto,
compreendeu imediatamente, sem teoria alguma, que os seus não sei seguiam uma
progressão aritmética, enquanto as pancadas, uma geométrica. Olhando para o
chão, com uma voz submissa disse que estivera com Inês no dia anterior, mas que
não sabia onde ela estava nesse momento. O policial alto e gordo segurou a
camiseta de Teodoro pela gola e lhe perguntou por que tinha manchas vermelhas,
de onde vinha aquele sangue. O homem balançou a cabeça, disse que não era
sangue, aquilo era tinta vermelha. Eu sou pintor, repetiu duas vezes Teodoro
girando a cabeça tentando convencer as autoridades.
Levado para a delegacia, Teodoro foi
conduzido a uma sala escura com uma mesa de madeira envelhecida e duas
cadeiras, onde foi deixado sozinho. Apenas um lâmpada fraca no teto dissipava o
breu. Bastante cansado, soltou o corpo sobre o assento e tirou alguns cochilos
esparsos. Seu corpo tremia com a baixa temperatura, e a cada vez que acordava
cruzava os braços e esfregava um pé contra o outro, mas logo era vencido por um
sono leve alimentado pelas horas insones e a embriaguez. Depois de uma hora, os
três policiais entraram no local. Teodoro acordou um pouco mais orientado do
que estivera anteriormente. O delegado de bigode e sobrancelhas espessas ocupou
a cadeira vazia, o oficial alto e gordo ocupou um espaço atrás de seu chefe,
enquanto o loiro de nariz torto ficou às costas do interrogado. Sobre a mesa, o
delegado pôs uma foto de uma mulher de 25 anos. Vocês a conhece, perguntou ao
outro. Teodoro disse que sim, que era Inês, ela havia sido sua mulher por dois
anos. Com outra afirmativa ele respondeu que haviam se separado há dez meses.
Ela tinha um amante, justificou para o fim da relação. O loiro de nariz torto
perguntou se eles tinham se visto no dia anterior. Virando-se para trás, ele
disse que sim. O alto e gordo quis saber como havia sido esse encontro. Teodoro
a encontrou na festa pela emancipação do município recém-criado. Toda a
população estava lá. Foi uma festa bonita, havia uma banda de música, palhaços,
barracas de comida e bebidas, discurso de políticos e uma queima de fogos de
artifício. O delegado de bigode e sobrancelhas espessas perguntou o que eles
haviam conversado. Teodoro disse que não iria permitir que a ex-mulher fosse
embora com a filha deles. Então, você a ameaçou de morte, completou o chefe dos
policiais. Não foi bem assim, quis amenizar o investigado. Já tinha bebido,
continuou a se explicar, não faria mal a ela. Quando descobriu que ela tinha um
amante, deu-lhe uma bofetada, mas não pensou em matá-la. Apenas queria
demovê-la da ideia de levar a filha deles para viver em outra cidade. Você é um
covarde que bate em mulher, gritou o loiro de nariz torto no ouvido de Teodoro.
Este se encolheu na cadeira e tapou a orelha com a mão. Por isso matou Inês?
Por que ela queria mudar de vida? Qual foi a arma usada no crime? Havia a participação
de mais alguém? Onde estava o corpo? Mais perguntas que ele não sabia
responder. A Inês está morta? Quando isso aconteceu? Foi um assassinato? Quem é
o responsável? A filha está bem? Dessa vez eram as perguntas dele que se
acumulavam.
O delegado de bigode e sobrancelhas
espessas anunciou que Teodoro estava sendo investigado e acusado pelo homicídio
de Inês baseado na declaração da ex-sogra que ouviu as ameaças feitas no dia
anterior. A confissão pouparia o trabalho da polícia e poderia reverter em algum
benefício ao acusado. Insistindo nas negativas, o homem se declarava chocado
com aquela situação, queria colaborar, mas negava ser o autor do crime. Como
eles sabiam que ela não tinha simplesmente ido embora? Havia um cadáver? Havia
arma do crime? O delegado se levantou e gritou. Quem era ele para ensinar a
polícia a fazer o seu trabalho? Ainda aos berros, o policial de maior
autoridade o acusou de ser pobre. Veredicto: culpado (era mesmo. Trabalhava
como pintor de paredes quando surgia uma oportunidade, mas não tinha uma renda
fixa com a qual pudesse contar). Foi acusado de ser negro. Veredicto: culpado
(embora fosse mais mestiço do que um negro autêntico, naquela terra de
imigrantes europeus era um dos poucos com pele escurecida). Também foi acusado
de ser safado. Isso não, Teodoro se levantou contra-argumentando com raiva e
indignação. Voltou a sentar com o tapa na cara que recebeu. Sou um trabalhador,
proferiu com voz tímida. Nós é que vamos te trabalhar, disse o policial alto e
gordo, fazendo com as duas mãos o gesto de aspas enquanto pronunciava o verbo
trabalhar.
Confesse, gritava o loiro de nariz
torto. Um golpe de bambu atingia a sola dos pés de Teodoro. Confesse, repetia o
alto e gordo. O bambu acertava os dedos gelados. Confesse, confesse, confesse.
Um zunido cortava o ar e cessava quando o som do choque entre a vara e os pés
produzia um ribombo. Depois de quarenta minutos, quando cansaram de bater, os
policiais interromperam a tentativa de conseguir uma confissão. Teodoro não
conseguia apoiar o peso do próprio corpo sobre os pés. Sem orgulho, ficou de
joelhos, a única maneira de manter a cabeça erguida. O delegado se aproximou e
perguntou se a confissão sairia ainda hoje ou ficaria para outro dia. Mesmo
tendo estudado apenas até o segundo ano do primário, sendo um analfabeto
funcional, Teodoro lembrou de trechos de um filme que assistiu na televisão,
enquanto pintava o muro de uma casa, no qual um prisioneiro pedia a presença de
um advogado. Por um momento, se imaginando um cativo hollywoodiano, ele solicitou
um defensor que intercedesse por ele. O loiro de nariz torto riu e deu um tapa
na parte posterior do crânio do acusado. Ninguém sabe que você está aqui, seu
negro pobre safado, gritou o delegado de bigode e sobrancelhas espessas. Ele
pronunciou as três palavras como se fossem uma coisa só, um só termo para
definir o diferente: negro-pobre-safado. Como se na língua portuguesa fosse
possível juntar diferentes vocábulos e obter um conceito como no idioma alemão:
negropobresafado. Se tal palavra existisse, aqueles três policiais teriam
encontrado a definição para o culpado perfeito. Ninguém viu que você foi
trazido para a delegacia, continuou o delegado para Teodoro, se você
desaparecer, não haverá uma só pessoa a dar pela sua falta nesta cidade. Não
venha dizer como a polícia deve fazer o seu trabalho, berrou o alto e gordo.
Segurando o queixo do acusado, o delegado lhe disse que ele era o culpado ideal
para o primeiro crime do município recém-criado. Essa era a hora de um exemplo,
e esse era um dos bons. Nenhum bandido iria zombar do poder da polícia, ninguém
diria que o novo município não sabia resolver os seus casos. Tudo tem uma
explicação, basta se esforçar para encontrá-la, continuava o delegado. Se não
há arma do crime, ora, o criminoso a escondeu. Se não há o corpo da vítima,
ora, o criminoso a escondeu. Se não há um advogado de defesa, se não há um
julgamento, ora, a indiferença da sociedade escondeu a justiça dos mais pobres.
Ninguém quer saber de você, disse o loiro de nariz torto. Ninguém quer saber da
sua vida invadindo o Jornal Nacional na hora do jantar, acrescentou o alto e
gordo.
Comentários
Postar um comentário