"Sinisdestra" é um livro de contos interligados por um tema comum a todos.
Você encontra as partes anteriores nas postagens antecedentes.
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13.
O dia amanhecera com
uma temperatura baixa, um frio fora de época que causou espanto na
população. Agasalhadas, as crianças se dirigiam para a escola
depois de muito tempo. Era a retomada de uma rotina interrompida pela
guerra que custou a independência do país. Todas as classes foram
recepcionadas no grande auditório escolar pelo diretor e seus
auxiliares, da mesma forma que se dava a cada início de ano letivo.
Contudo, muita coisa havia mudado desde o fechamento até a
reabertura do colégio, a começar pela enorme bandeira desfraldada
atrás do palanque em que o diretor faria o seu discurso de
boas-vindas. Sentados de frente para o palco elevado, as crianças
tinham perante os seus olhos o símbolo máximo da derrota de seus
pais e de todo o país, pois eram expostas à bandeira do inimigo, ao
estandarte daqueles que haviam lhes privado da liberdade, os
poderosos anexadores. Embora para as crianças da primeira série
aquele cerimonial fosse uma novidade, as mais velhas sentiram o
desgosto de saberem pelo discurso do diretor que receberiam aulas de
história da nação soberana em substituição à do seu próprio
país, agora apenas um território do outro. Da mesma forma foram
surpreendidas por serem obrigadas a estudar o idioma de seus
conquistadores.
Na sala de aula da
primeira série, a professora recebia os alunos recém-saídos do
auditório. Tentando absorver as novidades, as crianças ouviam a
respeito das tradições da escola, do trabalho que seria
desenvolvido ao longo do ano, de como aprenderiam as letras, a formar
sílabas, a compreender as palavras, a formar frases e ler pequenos
textos. Ainda abalada por ter perdido parte da família na guerra, a
professora misturou um discurso político ao programa de ensino aos
alunos sem se dar conta que um dos netos de João Remocaim, o
ministro da Integração Nacional, era um dos membros da classe. O
pequeno Nei, com apenas sete anos, tentou defender o avô, negando a
acusação de que ele tinha entregado o país aos invasores, e
reproduzindo o que ouvia em casa, ou seja, que o seu antepassado
tinha salvado a nação da extinção, por isso era um herói. A
professora se desculpou com a turma e disse que não entraria nessa
discussão com eles, pois seu trabalho ali era outro. No entanto,
mesmo entre crianças de sete anos, os sentimentos despertados em uma
guerra afloram de maneiras que não podem ser totalmente controladas.
O meu pai disse que
o seu avô é um verme, gritou o pequeno Luís Medeiros. Vendeu o
país a preço de bananas.
Verme é o seu pai e
toda a sua família, devolveu o outro.
Os meninos se
levantaram e começaram a trocar empurrões. A professora interveio
tentando separá-los, mas logo viu voar material escolar na direção
de um e de outro. Algumas crianças que não estavam envolvidas na
discussão acabaram alvejadas por cadernos, lápis, borrachas e
merendeiras. Logo no primeiro dia de aula, Nei Remocaim e Luís
Medeiros foram levados para a coordenação da escola para darem
explicações. Para manter a disciplina na instituição, o diretor
determinou que Nei levaria uma suspensão de um dia, enquanto Luís,
uma de três dias. Não aceitava apelação do que havia determinado.
À mãe que fora lhe
buscar mais cedo do que imaginava, Luís explicou que fora suspenso
por brigar com um colega. A mulher conversou com o diretor, afirmou
que estava surpresa, porque o filho jamais tinha se envolvido em
confusão antes, era um menino tímido e pacífico. As tentativas de
persuadir a autoridade escolar a reconsiderar a sua posição foram
infrutíferas, apesar da insistência. Pressionado, o diretor
aconselhou a mãe a falar com o seu filho, pois ele era jovem e ainda
não tinha ideia das consequências do que tinha feito, mas ela era
adulta e deveria ter algum juízo para saber que Luís havia brigado
com um Remocaim. Na mesma hora ela entendeu e aceitou o
aconselhamento.
Em casa, Luís
estava quieto em seu quarto, lendo um livro, cumprindo a punição
imposta pelo castigo dado por sua mãe. O pai entrou sem bater no
dormitório e foi logo pedindo explicações ao filho.
Eu só disse o que o
senhor sempre fala em casa, respondeu o menino com uma voz trêmula e
assustada. O senhor disse que o ministro era um verme que tinha
vendido o país a preço de bananas, eu só repeti.
Por que você foi
falar isso, perguntou Afonso Medeiros. Meu filho, há coisas que não
podem ser ditas em público. Às vezes, temos que fingir que somos
estúpidos, que não vemos e não ouvimos nada, porque um dia esse
país vai se levantar, mas ainda não é a hora, e quando chegar esse
momento, vamos poder varrer os corruptos que infestam e acabam com o
maior patrimônio público da nação: o seu próprio povo. Até lá,
temos que juntar nossas forças, porque divididos pereceremos, mas
unidos somos vigorosos.
A fala do pai foi
interrompida pela campainha. Ao abrir a porta, Afonso se deparou com
três policiais a lhe encarar.
Aqui é a residência
do senhor Afonso Medeiros, perguntou o mais velho dos oficiais,
aquele que parecia ser o líder.
Sim, sou eu mesmo,
respondeu o dono da casa.
Viemos buscá-lo,
replicou o policial. Lugar de verme é atrás das grades.
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