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Uma noite para a memória

          A luminosidade de um amanhecer ensolarado penetrava pelas frestas da persiana. Tentando puxar o lençol para cobrir o rosto, Verônica não conseguia mover a coberta, porque estava presa sob o corpo de Fred. Depois de olhar o adormecido que havia conhecido na noite anterior, procurou pelo relógio, mas não conseguia decifrar o enigma dos ponteiros sem suas lentes de contato. Tateou pela mesa de cabeceira e encontrou o seu telefone celular. Trazendo o aparelho bem próximo dos olhos, viu que eram 7 horas e 3 minutos. Péssimo horário para despertar em um sábado pela manhã, logo após uma madrugada que fora longa e repleta de atividades. Verônica levantou-se, cansada, precisando de descanso, pisou em uma camisinha usada que estava jogada no chão, e correu a cortina branca para tentar escurecer o quarto. Um pensamento recriminador lhe ocorreu ao lembrar que esse tipo de cortina servia para a sala de estar, mas não para o quarto. Iria providenciar uma que tivesse um tecido mais espesso e escuro. Na falta de uma máscara de dormir, ela puxou umas meias pretas da gaveta da cômoda e voltou para a cama. Mais uma vez olhou para Fred que dormia apenas de cueca, virado de costas para ela. Parecia tão jovem, poderia ser um colega veterano do filho dela. Nas costas, na parte superior, abaixo do ombro, do lado esquerdo, havia uma tatuagem retratando uma caveira e uma pistola. Apesar da imagem violenta, o homem dormia com a tranquilidade devida aos extenuados. Ela pôs o braço a envolver a cintura do companheiro, e acomodou o par de meias de modo a cobrir-lhe os olhos. Tornou a dormir.
          Ambos despertaram às 11 horas com o telefone celular de Fred a tocar. Sem conseguir se localizar no espaço e no tempo, ele custou a entender de onde vinha o funk carioca que era o seu toque personalizado. Apenas quando a canção cessara, o aparelho foi localizado no bolso das calças jogadas no chão próximas ao banheiro da suíte. No curto trajeto em que percorreu entre a cama e a vestimenta, o telefone móvel acusou o recebimento de uma mensagem de texto.
          Onde vc ta filho da puta, leu Fred, fungando, em voz alta.
          Alguma mulher, perguntou Verônica.
          Não, rapidamente negou Fred. É um grande amigo meu.
          Percebi pela maneira carinhosa, ironizou a mulher. E onde você está, ela perguntou.
          Tô no paraíso, disse ele.
          Verônica sorriu e soltou um gritinho de menina contente. Fred percebeu que tinha dado a resposta certa – rápida e no alvo. Embora a pouca luminosidade da noite anterior e a maquiagem, agora removida, que a embelezava, a mistura de álcool e pó deixassem-na com uma aparência mais jovem, Fred se via diante de uma mulher madura que ainda conservava alguns traços da formosura que deveria ter ostentado na juventude.
          Vô respondê rapidinho, disse ele, enquanto se dirigia para o banheiro da suíte.
       Ela correu na direção de Fred e pediu que ele usasse o banheiro social, localizado no corredor entre os quartos. Empinando o nariz que fungava, ele deixou o quarto pela primeira vez desde que entrara na noite anterior. Fechado na cozinha, o pequeno cão Pingo, um Yorkshire terrier, arranhava a porta e latia estridentemente. Verônica apanhou a caixinha em que guardava as lentes de contato e se trancou no lavabo da suíte. Enquanto ela fazia a assepsia de suas lentes, ele voltou ao dormitório para buscar as suas calças e a camiseta. Quando já podia enxergar as formas bem delimitadas, Verônica reparou no cabelo desgrenhado, encheu a mão com um creme para pentear e deu disciplina aos fios revoltosos. Fred tirou um pacotinho transparente contendo cocaína de dentro do bolso das calças. Depois de enfileirar o pó sobre a tampa do vaso sanitário, cheirou tudo de uma só vez.
          Alguns minutos se passaram até que ele emitiu uma resposta à mensagem recebida. Tô na casa duma dona chiq, enviou. Rapidamente recebeu: aonde eh (sem ponto de interrogação). Rua do paraiso ñ sei numero eh uma casa amarela, replicou.
          Verônica foi até a cozinha e liberou Pingo, que a recebeu com uma empolgação típica dos cães. Curioso, o cachorro deixou a dona e foi cheirar os pés do homem que tinha sido farejado de relance na noite anterior. Orgulhosa, Verônica fez as apresentações entre os dois machos de espécies distintas que dividiam o espaço em sua casa naquela manhã. Enquanto servia uma porção de ração para Pingo, ela perguntou se Fred queria tomar um café e se alimentar. Mesmo dizendo que não estava com fome, afirmou que iria acompanhá-la na refeição.
          Enquanto bebiam o café passado e comiam biscoitos e pães com geleia, começaram a conversar sobre a casa noturna onde se conheceram na noite anterior. Ele preferia as noites de quintas-feiras e sua programação com grupos de pagode; ela, no entanto, costumava frequentar as noites de sábado em que os sertanejos se apresentavam. Riram da casualidade de se encontrarem em uma sexta-feira aos embalos de música pop das décadas de 1980 e 1990.
          Você parece tão jovem, disse Verônica.
          Quantos anos eu pareço ter, perguntou Fred.
          Uns 26, eu acho.
          Tô com 28. Foi perto, mas me deixô mais jovem. Gostei de você.
          Agora arrisque a sua chance. Quantos anos você acha que eu tenho?
      Fred deu uma risada discreta, soltou um evasivo “vamos ver”, pensou que deveria estipular um palpite e diminuir dez anos para fazer um agrado e conquistar a simpatia da mulher.
          Então, não vai arriscar, perguntou ela.
        Eu diria que você tá, nesta manhã, tomando esse delicioso café na minha companhia, com 32 anos.
          Verônica riu bastante com uma satisfação genuína. Acariciando o rosto dele com a sua mão, ela disse que tinha gostado tanto do palpite dele que achava que nem iria desmentir o que havia sido dito.
          Você acha que é isso mesmo ou só está querendo me agradar, ela perguntou sorrindo.
          É o que eu acho de verdade, você é uma mulher muito bonita, disse ele travestindo o seu engodo na mais aparente sinceridade.
          Querido, eu tenho 46 anos, disse Verônica.
         Verdadeiramente surpreso por estipular que a idade dela deveria beirar os 42, Fred não precisou forjar a sua reação para exclamar que ela não aparentava ter vivido esses anos que se passaram. De parte a parte, eles começaram a fazer comentários elogiosos, depois passaram para um linguajar mais ousado, em seguida trocavam algumas vulgaridades que os excitava. Ignorando o cão Pingo que pedia atenção, o casal enroscou-se em beijos e abraços rumo ao quarto mais uma vez. Posto de lado, o cachorro riscou a porta da suíte com suas unhas, no entanto, vencido pelo descaso, deitou-se encolhido em frente ao que obstaculizava a sua entrada. Nus, sobre a cama, o casal estava esquecido do mundo, a realidade se restringia a quatro paredes que encerravam dois amantes que ignoravam os defeitos mútuos, por isso o prazer brotava tão facilmente de parte a parte. Por um instante, a figura do ex-marido visitou os pensamentos de Verônica, que em uma velada forma de vingança, disse baixinho no ouvido de Fred que quanto mais se ignora, mais fácil é amar. Tomaram-se com ainda mais ardor.
          Você tem outra camisinha, ela perguntou.
          Eles já tinham usado todas na noite anterior. Ele argumentou que era saudável, jamais tivera qualquer doença sexualmente transmissível, portanto poderiam dar continuidade àquela excitação, porque ele tomaria o cuidado de gozar fora da vagina dela. Verônica não concordou com as condições de Fred. Um pequeno impasse se formou com a insistência dele e a recusa dela. Concordaram que havia outras maneiras de se agradarem, então mãos e bocas correram livremente pelos corpos lúbricos sobre a cama.
          Dormiram abraçados até as 14 horas, mas foram mais uma vez acordados pelo funk carioca que soava do telefone celular de Fred. Dessa vez, o homem conseguiu atender antes que o outro desligasse. Abrindo a porta do quarto para falar em outra parte da casa, Pingo entrou em uma correria incontida e pulou sobre a cama. Farejando os lençóis suarentos, o cão foi acariciado pela dona. Embora a chamada fosse proveniente de um número desconhecido, Fred, já na sala de estar, atendeu mesmo assim.
          Onde cê tá, maluco, perguntou (exaltadamente) Azeitona.
          No mesmo lugar ainda, respondeu Fred. Te mandei a resposta por mensagem.
          Maluco, o Maioral roubou meu celular e mandou essa mensagem.
          Cê tá de brincadeira comigo, gritou Fred. Isso é brincadeira, Azeitona? Tá querendo curtir com a minha cara, seu filho da puta?
          Sai daí, maluco. O Maioral vai atrás d’ocê pra cobrar aquela dívida.
          Filho da puta!
          Fred voltou agitado para a suíte, recolhendo as roupas espalhadas pelo chão. Verônica, desconfiada com os gritos que ouvira instantes antes, perguntou o que estava acontecendo. Atabalhoadamente, Fred disse que um imprevisto tinha acontecido, por isso teria que partir. Pediu desculpas pela pressa, enquanto vestia suas roupas com uma agilidade militar. Sem entender, a mulher tentou usar de um artifício feminino e perguntou se ele iria mesmo deixá-la assim, fazendo uma expressão de que apenas as mães são capazes. Sem dar nenhuma atenção à artimanha dela, Fred saiu correndo em direção à porta de saída da casa, perseguido por Pingo, na certa, expectando que fosse uma brincadeira. Antes de sair, o homem sentiu a necessidade de olhar para fora pela janela, quando esbarrou em uma luminária de chão com haste e base de ferro, com cerca de um metro de altura, que balançou para os lados, mas não caiu.
          Filho da puta, gritou mais uma vez.
      Em frente à casa de Verônica, Mamute e Dinossauro, os dois capangas de Maioral, vigiavam a residência amarela da Rua do Paraíso. Verônica e Fred se encontraram sob o marco que guarnece o vão da porta do quarto. Ela saía após se vestir velozmente, ele retornava sem nenhum plano definido.
          O que está acontecendo, ela perguntou.
         Filho da puta, filho da puta, repetia ele. O filho da puta fez uma tocaia e tá atrás de mim.
          Quem?
          Um traficante. Tô devendo uma grana pra ele.
          Verônica espalmou a mão na testa e correu para a janela da sala. Viu quando um carro parou diante da sua casa. O motorista manteve-se dentro do veículo com o motor ligado, embora um sujeito com cara de bandido tenha desembarcado. O recém chegado passou algumas instruções para aqueles que o aguardavam. Um desses homens deu a volta na casa, procurando por possíveis rotas de fuga. Os outros se aproximaram da porta, mas tentaram manter a discrição.
          Tem por onde fugir, perguntou Fred.
          Não, só tem uma porta e todas as janelas tem grades, porque não quero que bandidos e traficantes entrem na minha casa, respondeu Verônica. Vou chamar a polícia.
          Não! Sem porcos na parada. Vai ser muito pior.
          Que merda, Fred. Como é que você me envolve nessa merda toda?
          Fica tranquila. Vai ser bem melhor assim.
          Como é que eu vou ficar tranquila se tem quatro bandidos ao redor da minha casa? Por que eles não bateram na porta, apertaram a campainha, quebraram a janela ou atiraram ainda?
          Devem tá sacando as parada. Tão vendo qual a melhor maneira de fazê as treta deles.
          Pare de falar essas gírias de marginais. Antes você não falava assim. Como você fez dívidas com eles? É muito alta?
          Foi com pó. Tá nuns três conto.
          Três mil? Você injeta cocaína?
          Mais cheiro do que injeto.
          Seu filho da puta! Ontem você cheirou?
          Ontem e hoje.
          Hoje? Quando? Eu não percebi.
          No banheiro, antes do café.
         Seu filho da puta. Eu trouxe você para a minha casa. Vá resolver os seus problemas com esses traficantes lá fora e me deixe fora disso.
          Eu não sô maluco de sair.
          Ambos deitaram sobre o tapete da sala de estar temendo que a qualquer momento os traficantes pudessem efetuar algum disparo com suas armas. Pingo farejava a porta e latia com a coragem que cabe aos cães que ignoram o tamanho do perigo. Verônica repetia diversas vezes que não queria que o filho soubesse dessa sua aventura. Estava envergonhada e arrependida de ter trazido um desconhecido para dentro da sua casa. Por uma boa noite de sexo, agora corria o risco de ser morta como mulher de um drogado pé-rapado endividado com negociantes de cocaína. Era muita humilhação para uma mulher que vivia tão bem a discrição da sua solteirice pós-divórcio. Ela tinha se envolvido com outros homens, tivera alguns namoros rápidos, divertira-se com amantes casuais, mas jamais tinha passado por seus pensamentos se deparar com uma situação dessas. No chão, não tinha como descer mais.
          Que idade tem o teu filho, perguntou Fred.
          Ele tem 21 anos, ela respondeu. Estuda odontologia, nunca cheirou cocaína. É o tipo de homem que pode se envolver com uma mulher sem que ela corra o risco de morrer.
      Fred, tentando acalmá-la, quis dar seguimento à conversa. Qual é o nome dele, perguntou. A resposta dela foi um compreensível “não interessa” com toda a rispidez possível. Ao dizer que muitos médicos e dentistas se aproveitam das facilidades de suas profissões para se abastecer com drogas, Fred não melhorou o ânimo dela nem conquistou mais simpatia com essa conversa. Percebendo a mancada anterior, ele tentou retomar o contato de outra maneira. Querendo parecer interessado, o homem perguntou se Verônica tinha apenas um filho. Sem esconder a irritação, respondeu que tinha uma filha de 18 anos que estava morando na África do Sul. Surpreso, ele quis saber o que a garota fazia tão longe de casa. Verônica respondeu com apenas uma palavra: intercâmbio. Não quis dar continuidade àquela conversa.
          Os latidos de Pingo ficaram mais altos e estridentes quando um dos traficantes bateu à porta. Diante do perigo iminente, Fred, nervoso, tentou retomar a conversação, declarando que tinha duas filhas com duas mulheres diferentes. Sua alcunha, Fred, não provinha de Frederico, mas de Alfredo.
          Eu não quero saber, gritou Verônica.
        Com apenas um chute com a sola do pé, o capanga Dinossauro arrombou a porta de entrada da casa. O susto fez a mulher começar a chorar estática sobre o tapete. Fred se levantou pedindo calma, pedindo um tempo, pedindo com palavras que nem se articulavam corretamente na sua boca. Pingo acuava e rosnava para os invasores. O traficante Maioral, ao entrar na casa, tomou a luminária com haste e base de ferro e bateu violentamente na cabeça do cachorro. Cessaram-se os latidos, avolumou-se o pranto.
          Dinossauro segurou firmemente o pescoço de Fred, asfixiando-o.
          Cadê a minha grana, vagabundo, berrou Maioral.
         Solto pelo capanga, Fred caiu de joelhos, e tentando recuperar a respiração, disse que não tinha o dinheiro, por isso precisava de um tempo para obtê-lo. Um chute no osso esterno, no meio do peito, arremessou Fred contra a estante de livros da sala de estar. Um volumoso dicionário de língua portuguesa desabou sobre a cabeça dele, o que disparou as risadas dos bandidos.
          Só assim pra esse burro relá num livro, disse às gargalhadas Maioral. Se não vai pagá por bem, vai pagá por mal.
          Enquanto Dinossauro levantava Fred do chão, Maioral explicava que não iria matar o seu cliente em débito, porque antes de uma pena capital, é dever da sociedade ensinar o infrator a não cometer o mesmo erro novamente. Dotado de uma tortuosa ética própria, o traficante afirmou que não estava levando nada para o lado pessoal, tudo se tratava de uma questão de negócios – business, como fez questão de enfatizar. Com a luminária mais uma vez na mão, Maioral golpeou os dois joelhos de Fred. Com as duas tíbias e as duas patelas partidas, o devedor não pôde se sustentar em pé. Seus gritos abafaram o nervoso choro incontido de Verônica.
          Levantando a mulher pelos cabelos, Maioral disse que viera para fazer negócios, então não iria embora sem nada. A senhora é a mãe desse filho da puta, gargalhou ao fazer a pergunta. Uma coroa trepando com um vagabundo desses, completou Dinossauro. Humilhada, Verônica foi jogada sobre o sofá, enquanto os bandidos roubavam os aparelhos de televisão, os computadores portáteis, algumas joias e a chave do automóvel.

          Sem poder andar, Fred não acreditava na sorte por ainda estar vivo. Paralisada sobre o sofá, Verônica jamais sentira de tão perto a visita da morte.

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