"Sinisdestra" é um livro de contos interligados por um tema comum a todos.
Você encontra as partes anteriores nas postagens antecedentes.
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17.
Atrás da porta de madeira
maciça, no interior do recinto, uma voz grave, um timbre de um baixo
de teatro lírico, pedia a senha ao recém-chegado que precisava dar
provas de que era merecedor de lhe ser concedido o privilégio de
entrar. Do lado de fora, o outro homem se aproximou da porta e
proferiu o código que lhe garantia o acesso.
Companheiro Hermes se
apresentando, disse o recém-chegado.
Em nome de quem, perguntou o
que fazia a segurança da entrada.
Venho do Quarto Comando em
nome da libertação, respondeu.
Junte-se aos demais na sala
de reuniões, instruiu o outro.
Atendendo pelo codinome
Hermes, aquela era a primeira reunião de cúpula da qual
participava. As acomodações eram modestas para não chamar a
atenção em um bairro popular, uma área que muito sofrera as
consequências da guerra. Naquele ambiente mal iluminado, em que as
janelas permaneciam fechadas e cobertas por grossas cortinas de lona,
quatro homens conversavam em uma roda, enquanto bebiam cerveja in
natura e comiam carne assada cortada em cubos. O Companheiro
Ulisses se levantou e foi receber o novato que ainda não sabia onde
sentar, demonstrando um excessivo respeito aos demais.
Fico contente que esteja se
juntando a nós, disse o Companheiro Ulisses, o líder de todos os
comandos. No entanto, lamento o massacre na sua região. O
Companheiro Cronos era um bravo comandante e merece todas as nossas
homenagens.
Agradeço a acolhida,
respondeu Hermes. Realmente, o Companheiro Cronos comandou com
brilhantismo a nossa guerrilha. Infelizmente, ele não conseguiu
viver o suficiente para presenciar a libertação do nosso país. Foi
uma noite trágica aquela. Perdemos os principais homens na
hierarquia. Humildemente, me apresento como novo comandante do Quarto
Comando como uma forma de prestar tributo aos companheiros
assassinados e pela independência nacional.
Os outros três homens se
levantaram de suas cadeiras e foram ter com aquele que era uma
novidade. Os Companheiros Hades, Prometeu e Urano se apresentaram
como representantes dos outros três comandos que lutavam contra a
dominação estrangeira no país. Hermes fez uma breve apresentação
da sua história militar, da sua atuação nas guerrilhas e de sua
intenção ao se tornar o homem-forte do Quarto Comando. Apesar de
ainda acharem-no inexperiente e jovem para a responsabilidade, os
demais entendiam que a situação exigia medidas bruscas, e que o
rapaz tinha potencial para se tornar um importante artífice na
expulsão do exército inimigo que ocupava o território nacional.
Junte-se a nós, convidou
Ulisses. Deixe-me servi-lo com um copo de cerveja.
Não, senhor, recusou
Hermes. Eu não bebo durante o trabalho.
Logo se vê que é um
novato, disseram os demais. As risadas dissonantes se misturavam sem
qualquer ritmo ou harmonia, como uma massa sonora construída com
relinchos, grunhidos e bramidos. Acanhado, Hermes encheu a boca de
cubos de carne e aguardou pacientemente que o escárnio cessasse.
Ulisses se tornou sério de
um instante para outro, e anunciou que havia muito trabalho a ser
feito. Com seu tablet deitado sobre a mesa, ele apontava para
localidades retratadas no mapa urbano, mostrando o ponto para a ação
e as rotas de fuga. Precisariam de mais de vinte homens e mulheres
com treinamento de guerrilha para aquela ação. Os líderes debatiam
qual seria o melhor ponto estratégico para posicionar os integrantes
dos seus comandos. A possibilidade de haver mortes de ambos os lados,
tanto dos rebeldes quanto dos invasores, era bastante grande. O plano
era sequestrar o ministro da Integração João Remocaim e o líder
do Congresso Nacional do país anexador em uma ação relâmpago.
Desculpem-me, companheiros,
interrompeu Hermes. Sei que sou novato nas decisões do movimento,
mas tenho informações de que o saudoso Companheiro Cronos era
favorável a uma solução negociada antes de atos extremos. Essa é
a posição majoritária no Quarto Comando.
Você tem a ilusão de que
eles querem negociar conosco, perguntou Hades. Eles querem nos
destruir para demonstrar a força que têm, assim poderão comandar
os dois países sem oposição efetiva.
No Quarto Comando temos
informações de que nações estrangeiras são solidárias à nossa
causa, disse Hermes. Há um carregamento de armas chegando pelo
litoral norte em embarcações camufladas.
Nenhum governo estrangeiro
se manifestou publicamente a favor da nossa desanexação, disse
Urano. Não podemos esperar por um apoio que pode nunca chegar. Você
quer que sejamos um novo Tibete, perguntou ele.
Com a guerra perdemos todos,
disse Prometeu. Não prosperaremos enquanto houver conflito, mas não
concordo em sermos apenas um apêndice de uma poderosa nação
usurpadora. Hei de morrer lutando e de pé.
Pelos próximos vinte
minutos de reunião, Hermes não disse uma palavra, enquanto os
demais discutiam e negociavam áreas no terreno, a colocação de
atiradores treinados, de figuras à paisana para facilitar a fuga, de
guerrilheiros dispostos a perder a própria vida pela causa, de
motoristas preparados para as perseguições mais agressivas. Um dos
comandantes sugeriu que fossem usados explosivos de alto poder de
destruição contra o exército inimigo. Outro disse que isso
colocaria em risco a vida da desavisada população local. Não eram
terroristas, mas entenderam concordaram que não podiam arrombar uma
porta sem estragar a fechadura.
Por que você está calado,
Companheiro Hermes, perguntou Ulisses.
Sou jovem, mas vivi a
guerra, vi nossa nação sucumbir, testemunhei as manobras políticas
de João Remocaim para permanecer no poder, estive ao lado de homens
e mulheres que foram mortos por nossos inimigos. Nosso tempo não é
antes nem depois, mas agora, esse agora tão fugidio, tão
insignificante que jamais voltará. É tudo o que temos, porque somos
insignificantes também, todos nós viemos após um enorme intervalo
de tempo em que não existíamos e partiremos deixando outro par de
incontáveis voltas no relógio que jamais nos terá por perto
novamente. Somos tão pequenos diante de tudo, uma parte tão
diminuta do todo, e apenas agora compreendo como não existir é a
regra e que a vida é uma exceção. Somos tão pobres de vida, nos
apegando às poucas décadas que temos neste planeta, enquanto a
infinidade do antes e do depois nos ignora como a poeira que somos.
Nesse momento, tomei a minha decisão. Farei o que é certo.
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