Cenário:
uma casa simples, uma construção de madeira desgastada, cujas
paredes não apresentam harmonia nas cores, pois, uma hora ou outra,
partes precisam ser trocadas ou remendadas; o teto é coberto por
telhas de zinco deterioradas, e sob os buracos, emendas, sob as
emendas, vasilhas para conter a água da chuva; o piso irregular é
revestido por uma pedra granulosa, fina e quebradiça, que apresenta
inúmeras rachaduras em diversos pontos.
Em
pé, reunidos ao redor da mesa posta no canto da diminuta e mal
iluminada sala de estar, a expectativa dos presentes era para que a
sopa esfriasse o quanto antes. Embora o móvel com o tampo fosse
pequeno, a casa fosse pequena, a família era grande – tal qual a
fome para quem esperava até o meio-dia pela primeira refeição.
Sopa no verão não era o cardápio preferencial nem para elas, nem
para ele; contudo, não havia outro alimento para lhes amainar a dor
e o roncar de suas barrigas, de onde despontava a sensação de que
um habilidoso marinheiro brincava de entrelaçar todos as voltas que
o intestino pode dar.
Sopa
de mandioca de novo, exclamou Sabonéty, a filha mais velha do casal.
Ah!,
foi o que deu para fazer com o dinheiro que a Cremilda trouxe para
casa, justificou a mãe.
Foi
tudo o que o homem quis me dar, explicou timidamente Cremilda, a
caçula das quatro irmãs.
Com
uma ordem do pai, as mulheres se calaram. Como uma autoridade em sua
pequena gleba, ele não queria discussões no instante mais
importante do dia. Agora se come, ele disse, depois se resolvem as
diferenças. Em seu andar cambaleante com uma perna mais fina do que
a outra, com a testa suarenta a absorver o vapor emanante da panela,
o pai foi o primeiro a se servir, e, em seguida, ocupou um dos dois
únicos lugares à mesa – aquele que era o seu trono de madeira sem
encosto e recoberto por uma surrada almofada vermelha. Seguindo a
ordem habitual, a primogênita encheu o seu prato com a sopa de
mandioca e foi, equilibrando a refeição durante a trajetória, se
sentar no sofá de dois assentos, onde apoiou a comida sobre os
joelhos protegidos por um pano dobrado. Detergina, a segunda filha na
linha sucessória, deu prosseguimento à fila e ocupou o espaço vago
ao lado de Sabonéty; porém, para ela havia sobrado o lugar com os
rasgos no estofamento, que tanto pinicavam as suas coxas magrelas.
Automaticamente, Shampulote, a terceira filha na ordem de
nascimentos, seguiu o exemplo das outras; no entanto, foi encontrar
onde basear-se apenas sobre o colchão colocado no piso da sala, que,
na maioria das noites, lhe servia de cama. Na vez de Cremilda, que
enxergava pela metade – um olho intacto, o outro arroxeado e
inchado –, ela percebeu que as mandiocas já rareavam no fundo da
panela. Vendo as duas únicas raízes tuberosas que boiavam na sopa,
Cremilda se serviu de metade, depois se sentou sobre a cama dos pais,
no único quarto que a casa dispunha. A mãe, como sempre, foi a
última a encher o seu prato, e quando ocupou a cadeira vazia à
mesa, junto ao marido, este já dava a última colherada em sua
refeição.
Ah,
se não fosse essa perna ruim, o homem se queixava de sua condição
e por ter de se alimentar com a comida insossa da esposa.
Inconformado
com o acontecimento do dia anterior, enquanto as garotas ainda
comiam, o homem começou
a explicar às filhas que elas não podiam agir como tolas, que
jamais
deveriam se deixar enganar nem fazer com que pensassem que eram umas
bobas sem experiências
de vida. Aqueles que têm dinheiro não querem pagar, dizia a elas; e
os que não têm, sempre dão um jeito de conseguir de graça o que
querem. Tão
logo terminou
de almoçar, à sua maneira, Detergina explicava as instruções do
pai para Shampulote, que jamais escutara um sonido desde o
nascimento. Os pais e as outras irmãs não sabiam ao certo o quanto
a garota surda entendia do que era comunicado, pois Detergina e
Shampulote tinham uma maneira particular de mímica que só era
compartilhada por elas. As palavras do pai eram uma represália à
caçula que recebera apenas a metade do dinheiro que deveria
obter pelos
serviços prestados no dia anterior.
O
homem disse que por eu ser muito pequena, iria me pagar só meia,
contou Cremilda – 14 anos recém-completados.
E
o olho roxo, perguntou a mãe. Como você explica, ela continuou
inquerindo.
Como
eu não gostei da cara de pau do sujeito, eu disse que não tinha
problema ele pagar só a metade, porque com o tamanho daquele
pingulim de anjinho, era só meia-entrada mesmo. Acabei levando essa
porrada na cara, explicou Cremilda.
Apesar
do relato de violência, a mãe, Sabonéty e Detergina riram muito da
zombaria da caçula. Depois de alguns minutos, tão logo entendeu a
mímica, Shampulote também começou a rir, balançando os ombros
para cima e para baixo, enquanto emitia, com a boca aberta, um som
estranho que ela nunca poderia escutar. Carrancudo, o pai se fechava
em silenciosas recriminações à alegria que se espalhava pela casa.
É
para isso que foi feita a mulher?
Desgraça,
tua raça é diferente da minha,
com
os teus sorrisos fáceis,
com
os teus olhares cativantes,
com
o teu cheiro de fêmea,
com
as tuas formas sedutoras
para
os meus desejos animais.
Do que foram feitas as mulheres?
Vis,
demônios dengosos,
de
carnes mais nobres
do
que as que cobrem meus ossos,
de
pele macia
contra
meu couro salgado,
de
doces sabores,
sou
teu beija-flor,
minha
mãe, minha mestra, minha puta,
minhas
filhas, minhas putas filhas da puta,
minhas
sócias, meu pão,
minha
fome, minha salvação,
sou
o pai, não me abandonem,
aqui
mando eu!,
sou
o rei deste trono tão pobre,
acreditem
em mim,
sou
a lei, sou eu que sei,
não
se percam de mim,
não
me abandonem,
sou
seu pobre pai,
não
me deixem para trás,
vamos
nos levar
juntos
pela mão,
guio
eu,
guiam
vocês,
não
me deixem no escuro
da
minha própria falta de luz,
com
meus pés que não querem passar,
me
sigam, vocês precisam de mim,
não
caiam no abismo,
não
me deixem no topo,
me
levem ao vale,
não
me abandonem jamais,
respeitem
o seu pai,
pois
quem um dia deu a vida,
um
dia lhe pode tomar,
não
tenham medo,
mas
nunca me traiam,
sou
amigo dos diabos,
converso
direto com os deuses,
sou
vingativo,
detesto
perder,
não
me abandonem,
não
me abandonem a mim mesmo,
não
poderei suportar
se
por um dia inteiro
eu
for a única companhia
que
houver para mim.
As gargalhadas das cinco mulheres, desde as recém-entradas na feminilidade até as mais experientes, ainda se propagavam com uma leveza no ar daquela casa, cuja atmosfera densa se comparava a das profundezas oceânicas. O pai, de todo o amontoado de pensamentos que lhe varreu a cabeça por um instante, conseguiu apenas explodir em um grito autoritário. Chega de risos, porque o assunto é sério, ele sentenciou com a imposição do medo que lhe garantia o status de senhorio do lar. Calaram-se quatro das mulheres, e, naquele momento, ouviu-se apenas a estranha vocalização de Shampulote rindo sozinha sem ter escutado o ralho do pai. Detergina pôs o dedo indicador cruzando os próprios lábios, chacoalhou a irmã que não escutava, e lhe fez entender que era hora de fazer silêncio. Shampulote entendeu pela metade, sabia que a mensagem era para cortar o riso, para abaixar as mãos junto ao corpo, mas nunca o que era fazer silêncio, porque, para ela, não havia outra coisa além disso. Só sabe o que é o silêncio, quem já viveu o barulho.
No meu mundo,
as
bocas não falam,
mas
as mãos dizem coisas
com
amor, com raiva, com nojo;
as
palmas doem no choque,
e
na vermelhidão do contato,
enquanto
no palco,
alguém
agradece, encurvado e feliz,
por
essas mãos agressivas
que
tentam matar uma à outra;
todo
o meu corpo
é
um complexo instrumento
a
favor da linguagem,
e
as palavras
dançam
com meus braços
e
com o gingado dos meus quadris.
No meu mundo,
não
entendo o barulho
nem
o silêncio,
assim
como o cego
que
não sabe o que são
as
cores da terra e do céu;
vivo
guiada por meus outros sentidos,
e
não temo o trovão,
o
peido não me constrange,
o
atchim! de um espirro
é
algo incompreensível para mim.
O
calar é, tão somente,
dar
sossego às mãos tagarelas.
Instruindo as garotas, o pai explicou que, no dia seguinte, haveria a necessidade de outra de suas filhas se deitar com um desconhecido para que a família pudesse se alimentar. A mais velha esboçou uma reação de desaprovação, mas entendeu que o orgulho não sacia a fome. Explanando os seus motivos para ser justo, o pai disse que Cremilda não participaria do sorteio dessa vez, porque estava machucada e já tinha trabalhado no dia anterior – apesar do péssimo resultado que havia obtido. De uma velha vassoura de palha, ele arrancou três hastes, e fez duas tiras longas e uma curta. Escondendo a diferença de tamanho dos objetos entre as palmas das mãos, o homem pediu que as filhas tirassem a sorte para descobrir quais seriam as duas que comeriam às custas do meretrício da irmã. Após a gesticulação de Detergina, Shampulote entendeu que havia sido a escolhida. A surda de 16 anos mimicava com a sua intérprete de 17 em uma dança que envolvia as mãos e afetava o corpo todo, enquanto a família aguardava por uma tradução daquela conversa. A pedido da irmã, Detergina fez ao pai a pergunta que a outra queria poder articular com as palavras que lhe faltavam.
Por
que o senhor não começa a trabalhar, pai, indagou a intérprete de
Shampulote.
E
você sabe como está difícil arranjar emprego hoje em dia,
perguntou o homem. Ainda mais com esta perna ruim. Explique a essa
daí que ela não pode fugir das suas obrigações.
No
dia seguinte, Shampulote foi penteada, maquiada e vestida pelas
irmãs. Antes que ela saísse de casa, o pai pediu que Detergina
desse mais uma instrução à filha que não escutava nada de seus
disparates. Ele explicou que se o cliente fosse um conhecido da
família, a jovem deveria cobrar mais caro pelo programa, e se desse
um desconto, que ficasse a cargo da camaradagem, porque era preciso
manter uma certa reputação. Ele não queria que ninguém pensasse
que as suas filhas são putas pobres que se vendem a qualquer um.
Depois de Detergina ouvir o que o homem tinha a dizer, mimicamente,
passou a mensagem para a outra, que estava vestida como a noiva de
todos.
Após
ter escurecido, Shampulote retornou com o dinheiro suficiente para
que a mãe comprasse um pouco de carne, e também para que cozinhasse
alguma coisa mais sólida do que líquida. Aquele ganho era algo
inédito no histórico daquela família. As irmãs se perguntavam
como a outra tinha conseguido todo aquele dinheiro. Sabonéty havia
parado de pintar as unhas; Cremilda fechara o livro que lia. Pediram
a Detergina que obtivesse alguma explicação da surda. Depois da
breve comunicação, a intérprete revelou que o segredo de
Shampulote é que ela sabia remexer. A mãe concordou que isso,
realmente, era de grande ajuda, algo de enorme valia para uma mulher.
Comemorando o sucesso da terceira filha, o pai contava as cédulas,
pensando que nunca tivera tantas ao mesmo tempo nas mãos.
Os
homens gostam das mulheres que falam pouco, afirmou o pai. Essa
garota pode me deixar rico.
Por
alguns dias, nenhuma menina precisou voltar a se prostituir. A
família estava bem alimentada, e o pai seguia o seu planejamento de
curtíssimo prazo. Olhava os lírios crestados do campo seco, certo
de que a vida sempre encontra um caminho.
A
vida é dureza,
assim
fui ensinado,
mas
alguém tem de trabalhar.
O
patrão e o empregado,
o
mandante e o mandado,
coube
a mim comandar,
e
me pergunto
o
que seria desta família,
dessa
esposa retraída,
dessas
filhas perdidas
se
não fosse eu,
que
oriento,
que
educo.
Eu
aponto os caminhos,
ensino
a fazer,
sou
professor e não sei ler,
sou
administrador porque sei contar,
instruo
e recrimino,
cobro,
porque recompensas
quem
dá é a vida
que
sempre exige o seu preço.
A
vida é dureza,
os
vivos dela não querem sair,
nesta
terra que semeia sepulturas,
temos
apenas uns aos outros,
minha
mulher e minhas filhas,
comigo
podem contar,
sigo
a instruir,
sou
quase um escravo dessas mulheres,
não
cobro nada
e
ainda ensino a viver,
com
um prato de comida
e
um teto a me cobrir,
dou
o melhor de mim,
conduzindo
pelas armadilhas
que
a vida está sempre a armar.
Naquela
noite quente em que todos estavam em casa, em frente ao velho
aparelho de televisão, a mãe e Sabonéty sentadas no sofá de dois
lugares, se distraíam assistindo a uma telenovela; Detergina e
Shampulote, sentadas sobre o colchão posto no piso, faziam o
penteado uma da outra; Cremilda, a única que frequentava a escola,
lia um livro que fora deixado na praça por voluntários da
biblioteca municipal para que as populações carentes tivessem
acesso à literatura; enquanto o pai discutia com o rádio durante a
transmissão de uma partida de futebol.
Passado
o período da opulência familiar, um novo sorteio definiria quem
seria a heroína a salvar a todos da míngua de víveres. Por decisão
do pai, Sabonéty não participaria dessa vez. Estava menstruada e
era preciso ofertar boa qualidade aos clientes. O palito mais curto
ficou na mão de Cremilda. Com o olho curado, a menina se sujeitou às
regras democráticas. Secretamente, o pai lamentou que Shampulote não
tivesse sido sorteada mais uma vez.
Ao
voltar para casa, o pouco dinheiro trazido por Cremilda decepcionou o
homem mais uma vez. Havia o suficiente somente para duas panelas de
sopa de mandioca. Desse modo, com tão baixos rendimentos, o pai se
veria forçado a profissionalizar as filhas. Cremilda não tem jeito,
se todos se esforçassem, todos ficariam alimentados, pensou ele.
O
que foi que aconteceu desta vez, perguntou o pai à caçula.
O
moço disse que eu sou igual a um prato de sopa, respondeu Cremilda.
Só é bom se não tiver outra coisa para comer.
Você
tem que parar de ler e aprender a remexer, sentenciou o pai. Livro é
coisa de preguiçoso. Mulher tem que cuidar do corpo e não da
cabeça.
Ninguém
deixou a casa para trabalhar no dia seguinte. Apesar da escassez, com
o dinheiro foi possível saciar os estômagos acostumados com tão
pouco. Notando a introspecção da filha mais nova, a mãe foi até
Cremilda.
Por
que você lê tanto, perguntou a mãe para a filha.
Porque
ler é a única maneira de partir para quem não consegue ir embora.
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