Do
chão, caminhando rente ao muro de pedras sobrepostas iluminado pelos
raios solares que aqueciam aquela manhã de outono, o gato estudava a
melhor passagem entre a grade de ferro fixada sobre a divisa a
separar a casa do filósofo da residência vizinha, que permanecia
fechada há dois anos, ostentando uma desbotada placa de vende-se à
frente. Comprimindo os membros inferiores contra o chão, agitando o
traseiro, mantendo a cauda esticada como se servisse de leme, o
felino foi distraído por uma formiga alada que executou um voo
rasante sobre a sua cabeça. Como um boxeador, o gato desferiu golpes
no ar, porém o inseto transgrediu a lei da gravidade e alçou
alturas que o predador não podia alcançar. Concentrado, mais uma
vez, no muro que tencionava ultrapassar, com um só salto, o felino
se pôs sobre o muro e facilmente escapou entre as barras de ferro,
desfilando a sua compleição elegante e esguia, em cuja natureza,
forma mais bela não há. Seguindo em trajetória retilínea pelo
jardim descuidado, o gato parou apenas para afiar as garras na velha
laranjeira plantada há tantos anos na frente da casa vizinha. Como
costumava fazer todas as manhãs antes das nove
horas,
pulou o outro muro da casa à venda em direção à calçada junto à
rua. Com a cauda empinada, tomado por toda a sua confiança – não
em pessoa, mas em felino –, passeava determinado sem demonstrar
preocupação alguma com os cães, que latiam presos atrás dos
portões das casas vizinhas. Entre ladros, ladridos e latidos, seguia
o gato como o senhor das calçadas até se deparar com a residência
amarela com teto revestido com as avermelhadas telhas de barro que se
localizava na esquina de suas duas ruas preferidas. Na primeira via
ficavam as suas duas casas: onde recebia carinho, abrigo e comida; na
outra rua moravam as duas gatinhas siamesas, com quem ele tanto
gostava de namorar. O seu mundo poderia ser resumido àquela quadra,
a um cotovelo viário, um L, um cruzamento transversal. Um pedacinho
do mundo, no qual havia encontrado a felicidade, onde viveria todas
as suas vidas se, de fato, os gatos tivessem mais do que uma.
Ao
vê-lo se aproximando, o menino o chamou de Alvinho. Era um gato
albino, seu nariz e as almofadas das patas eram de um delicado rosado
despigmentado, enquanto os olhos tinham a matiz de um azul celestial,
ora eclipsado pelo dilatar da pupila em ambientes de restrita
iluminação. A pelagem branca era acariciada pela mãozinha negra do
garoto, que abria um largo sorriso ao reencontrar o amigo de todas as
manhãs. Desamarrando o cadarço do tênis, o menino sacudia o cordão
provocando o gato com um divertimento irresistível. Às vezes, o
garoto sofria um pequeno arranhão no pé ou na mão durante essas
brincadeiras, mas entendia que esse jogo de instigar o instinto de
caça do gato tinha os seus pequenos riscos que podiam ser ignorados
em nome da diversão, que sempre superava as feridas. Naquela casa
viviam o menino, a mãe e a avó. Para brincar com o garoto, o gato
seguia uma rotina: a visita se dava no início do dia. Após o
almoço, nunca encontrava o amigo. Embora fosse ignorante do
calendário humano, o felino percebia que, pelo segundo dia
consecutivo, a mãe estava em casa em um horário em que não
costumava encontrá-la. A razão para isso parecia ser a avó
acamada. O gato farejava algo diferente no ar, um odor de moléstia,
como se a carne, tal qual a fruta, já tivesse passado do ponto de
maturação – algo que os narizes humanos são incapazes de
perceber. Entrando na casa, o felino passou reto pela porta da
cozinha – normalmente o seu compartimento predileto – para
encontrar a mãe sentada sobre uma poltrona posta ao lado da cama em
que a avó estava deitada. Quanto mais perto da simpática senhora, o
gato percebia o cheiro funesto. Sem pedir licença, deu um salto
sobre os lençóis e se colocou próximo ao rosto de sua amiga
adoentada. Embora a mãe tenha se espantado (também por ser quem
tinha menos contato com ele), a avó sorriu e o chamou pelo nome:
Alvinho. A voz saiu débil, mas terna. Enfraquecida, a mão da velha
mulher afagava a cabeça do gato, acariciando a pelagem macia entre
as pontudas orelhas. Com o crânio, roçando, esfregando, ele
retribuía o carinho nos dedos e na palma da avó. A presença do
gato acalmou a idosa, e por esse momento cessaram os gemidos – a
terrível dor abdominal deixou de ser o centro de sua atenção. O
ronronar felino ditava um novo ritmo para a cena. Emocionada, a mãe
percebeu o bem que o gato fazia à mulher mais velha. De um modo
diferente, ele era uma companhia como ela mesma jamais poderia ser.
Com seu pelo branco e aveludado, o ronronar pronunciado, seus olhos
azulados passavam uma tranquilidade a quem os encarava. O gato era
puro afeto, uma sincera retribuição a quem tanto lhe dera carinho.
Ao
se conhecerem, a avó e o felino, em um tempo que o animal não
saberia contar, foram tomados por um sentimento de simpatia mútua,
uma amizade que nasceu facilmente. A velha senhora lhe serviu os
restos de um frango desossado posto sobre um pires, juntamente a uma
tigela com água. Reconhecendo o gesto solidário e generoso, o gato
se aproximou e esfregou o seu corpo nas pernas da avó, demonstrando
estar grato e contente pelo tratamento gentil que lhe fora concedido.
Em seguida, o menino chegou e ficou animado com aquela fofa presença
dentro da cozinha. Para o gato, aquele era o segundo humano com o
qual fazia amizade na mesma manhã – já era suficiente motivo para
gostar daquela casa. Titubearam em relação a como chamá-lo. A avó
cogitou:
1)
Branco. Bastante óbvio, uma referência direta à pelagem;
2)
Neve. Apesar de combinar com a matiz, não tinha relação com o
clima da cidade em que viviam;
3)
Arroz. Rapidamente descartado. Não agradou, nem quando tentaram
adaptar para Arrozinho, que soaria mais carinhoso.
Percebendo
que, de qualquer modo, todas as nomeações faziam referência direta
à cor, a avó optou por Alvinho. Soava terno, ao mesmo tempo em que
carregava uma dubiedade, sendo o felino o novo centro de afeto
daquela família. O gato, certamente, era quem menos se importava
como o nome que lhe fosse dado. São apenas sons humanos que não tem
significado para alguém da sua espécie. Em algum momento,
aprenderia que a combinação daqueles fonemas repetidos
exaustivamente diziam respeito a ele, principalmente quando
mencionados com amor. O gato mesmo não sabia o nome dos moradores da
casa, pois para ele bastava miar, e dessa forma estava se
comunicando, e sucintamente se fazia entender. No entanto, nesse
momento em que a sua velha amiga estava doente, ele entendia a
finitude da vida de modo natural, embora não compreendesse o tempo
da mesma maneira que os humanos, queria ficar próximo a quem tanto
apreciava. Para o gato havia apenas os dias e as noites, as manhãs
de passeio, as tardes de quietude, e as aventuras noturnas; semanas,
meses e anos eram desconhecidos, havia apenas a época de calor e a
de frio, o clima seco e o chuvoso, o tempo em que as gatas entravam
no cio. Junto à avó, sentia a mão dela a lhe afagar, ouvindo
agradáveis sons incompreensíveis dirigidos a ele. De repente, um
barulho vindo da cozinha lhe despertou a atenção. O gato virou as
orelhas naquela direção, enquanto olhava fixamente para o dedo
indicador da amiga a apontar para lá. Depois de esfregar a cabeça
na mão da velha senhora, com um pulo alcançou o chão e foi até a
cozinha, onde a mãe servia um prato de comida acompanhado de uma
tigela com água. Sendo acarinhado pelo menino enquanto comia, o gato
sentia confiança dentro daquela casa, e era um sentimento duradouro
para quem não distingue o passado, o presente e o futuro, tudo era
vivido no agora, no único lugar em que a felicidade faz algum
sentido.
Com
sua natureza inquieta, um desejo de nunca se prender a um lugar, o
gato deixava a casa amarela para retornar à outra residência, de
onde tinha saído mais cedo. No caminho, cruzava novamente o terreno
da casa com a placa de vende-se à frente, calculava o melhor espaço
para saltar entre as grades de ferro sobre o muro de pedras e, em
seguida, estava de volta. O filósofo o recebia com um carinho na
cabeça, que seguia por toda a coluna vertebral até o final da
cauda, sempre o chamando por seu nome: Sócrates. Mesmo desconhecendo
o significado, o gato percebia que os sons ditos pelo homem eram
diferentes de todos os emitidos pelas outras pessoas das redondezas –
deveria ser de outro lugar, de alguma paragem que ele desconhecia.
Por mais que o filósofo fosse diferente, o felino se sentia em casa
e muito bem acolhido quando passavam as tardes juntos. Solitário, o
homem ocupava boa parte do seu tempo lendo livros e jornais, bebendo
xícaras de café, escrevendo um romance em frente a uma máquina
repleta de botões e de uma tela brilhante ligada a outra que emitia
um som curioso toda vez que cuspia folhas de papel. Como de costume,
o homem serviu um pote de ração, um alimento farinhento e seco se
comparado com os pedaços de carne, frango e peixe que costumava
ganhar pela manhã na outra casa; contudo, o aroma era delicioso para
o seu olfato felino. Diante do amontoado de grãos que se empilhavam
uns sobre os outros, ele não conseguia resistir a dar umas boas
bocadas. Durante as tardes, o gato dividia o período em que ficava
deitado no colo do homem e o tempo em que dormia sobre uma almofada
colocada ao lado da cadeira de trabalho do filósofo, de onde ouvia o
barulho das teclas pressionadas em intervalos irregulares. Na maior
parte do tempo entendiam-se em silêncio, nem o gato precisava miar
nem o humano tinha de emitir aquela enorme quantidade de sons que as
pessoas usam para se comunicar. A compreensão de que um gostava do
outro vinha de uma linguagem corporal em que o toque era fundamental.
Como uma orquestra silenciosa de dois integrantes, o gato e o homem
respeitavam os seus próprios ritmos, encontravam a harmonia entre
eles e seguiam no mesmo tom, simples, mas perfeito.
Algum
desatento poderia pensar que toda a vida do gato poderia ser
compreendida apenas por um recorte do tempo presente, contudo, um
resumo nunca conta uma obra por inteiro. Depois de muito perambular
pelas ruas, a casa azulada do filósofo foi o primeiro ponto seguro
encontrado pelo felino após uma brusca mudança em sua vida. De um
dia para o outro, o humano, um jovem universitário, que vivia com
ele em um apartamento de um dormitório desapareceu de sua vida.
Depois de anos de convivência, em certa ocasião, os dois seguiram
juntos até um parque, que o gato não conhecia. Excitado com tanta
liberdade, ele subiu nas árvores, correu entre os arbustos, caçou
borboletas e outros insetos, mas quando procurou com o olhar
escrutinador pelo estudante, não o encontrou. Preocupado com o
paradeiro do outro, o gato buscou pistas do humano que poderia estar
perdido, que poderia nunca mais ser encontrado. Quando a noite
chegou, não havia nenhum sinal que apontasse para o paradeiro do
universitário, por isso o felino deu por encerradas as buscas do
período; porém, as retomou a cada raiar do sol, embora não
soubesse precisar quanto tempo havia decorrido. Embora a contagem e a
matemática fossem invenções exclusivamente humanas, o gato
compartilhava alguns sentimentos comuns às diferentes espécies. Em
suas investigações, ele sentia muita falta do rapaz que havia se
perdido, daquele que estivera com ele desde que era um gatinho,
quando cabia na palma da mão do estudante. Mantinha viva a esperança
de um dia reencontrar o sumido, mas por necessidade teve de abandonar
o parque e passou a perambular pelas ruas da cidade. Foi mal recebido
em várias casas até encontrar a residência azulada do homem de
fala diferenciada. Rapidamente fizeram uma amizade que, de certo
modo, substituía aquela que havia se rompido bruscamente. Foi nesse
momento de solidão e desesperança que a relação entre o gato e o
filósofo teve início, quando, mesmo sem nada saber, passou a ser
chamado de Sócrates.
Com
o cair da noite, o gato tinha um apreço maior por passear pelos
muros da vizinhança, aproveitando-se de sua condição de predador
mortal para caçar gafanhotos e camundongos. Distraído em suas
brincadeiras e jogos, evitaria visitar as gatas siamesas da rua de
baixo. Haviam chegado os dias de mau humor, o período em que todo
macho deve saber que para lidar com as fêmeas é necessário
conhecer o melhor momento para uma aproximação, afinal seus ânimos
são muito instáveis. Durante a madrugada, uma a uma, as luzes das
casas iam se apagando, inclusive as do filósofo. Satisfeito com as
suas aventuras, o felino encontrava uma fresta na janela da cozinha,
que lhe servia para retornar ao interior da casa. Em uma confortável
caminha redonda de cor verde, posta ao lado do leito do homem, ele
dormia até o dia iniciar.
Na
manhã seguinte, ao contrário do despertar silencioso costumeiro, o
gato pôs-se a miar alto, acordando o filósofo. Colocando o seu par
de óculos, o homem imaginou que o felino estivesse faminto para se
comportar desse modo inusitado. Normalmente, quando saía da cama,
ele notava que o gato já não estava mais lá. Contudo, nas noites
insones, em que passava as madrugadas entregue ao seu ofício
imaginativo de criação literária, já acompanhara com um olhar
curioso o início do passeio do felino pela casa vizinha após pular
o muro. No entanto, naquela manhã, o gato miava e se esfregava na
porta do quarto. Embora usassem formas distintas de expressão,
começava a haver um entendimento. Levantando-se, vestido com o
pijama, o homem foi em direção ao gato, que demonstrava a vontade
de ser seguido. Quando o felino parou em frente à porta de entrada
da casa, em vez de tomar o rumo da cozinha, onde poderia ser
alimentado, ou, ainda, poderia sair pela fresta na janela, o filósofo
compreendeu que a intenção era levá-lo para fora. Na visão do
gato se formou a imagem do homem agitando a mão espalmada para
frente e para trás, enquanto emitia sons ininteligíveis
acompanhados de passos de retorno ao quarto. Após miar pedidos que o
outro também era incapaz de decifrar com precisão, o homem retornou
com uma vestimenta diferente. Ambos saíram pela calçada, o homem no
encalço do gato que seguia decididamente à frente. Como
ficcionista, tentava se aperceber de suas próprias sensações e
emoções naquela inusitada caminhada, captando seus pensamentos e
imaginando que história poderia ser contada a partir dessa
experiência. Como filósofo, pensava sobre o acaso e o
incompreensível, divagando sobre o valor de transformar a sua rotina
em razão da vontade de um animal distante do saber racional, mas que
o conduzia e o fazia experimentar uma sensação de ser criança
novamente, de crer em uma vida construída por fatores aleatórios
sem interferências de um poder superior, sem escolhidos nem
rejeitados. Naquele momento, percebeu que o gato era um símbolo da
liberdade, um ser sem a culpa de um passado que não viveu nem a
expectativa de um futuro que jamais alcançaria.
Ao
chegarem em frente à casa amarela de esquina, o gato se sentou
diante do portão aberto. O filósofo notou um carro funerário
estacionado perante a residência. Ainda sem entender por que estava
ali, sem nem mesmo ter se alimentado ainda, o homem tomou o felino
nos braços, receoso de que pudessem estar atrapalhando alguma coisa.
O menino, que permanecia sentado de olhos cravados no chão, na porta
de entrada da casa, percebeu a presença do gato quando ouviu o
miado. Correndo em direção ao homem que tinha o felino nos braços,
o garoto acariciou a cabeça branca entre as pontiagudas orelhas.
Alvinho, disse o menino. Sócrates, respondeu o homem.
O
que aconteceu aqui, perguntou o filósofo com um sotaque estrangeiro.
Minha
avó está dormindo e ainda não acordou, respondeu o garoto. A minha
mãe pediu para eu ficar aqui fora enquanto o médico a examina.
Oui,
c'est d'accord,
disse o homem. Meu prénom
é Aloís, e o seu?
Zumbi.
Que
prénom
diferente.
Foi
a minha mãe quem escolheu, disse o garoto. É uma homenagem ao líder
do Quilombo dos Palmares. Eu gosto do meu nome. Um zumbi não precisa
ter medo da morte. O meu orixá disse que depois dessa vida passamos
por uma transformação e começamos outra vez, mas como outra
pessoa.
Cético,
ateu, comunista, filósofo e materialista, Aloís não sabia o que
responder. Sorriu para o menino, que retribuiu com uma expressão tão
serena e tranquila que causou um arrepio no homem. Será que Zumbi
não sabia o que tinha acontecido ou sabia tanto que aceitava a vida
como ela acontece, pois há ocorrências que não podem ser mudadas?
Sentados
sobre o gramado, o homem, o menino e o gato, se entendiam sem
palavras, prescindindo de significados para classificar o momento que
viviam. Juntos não havia solidão, nem mesmo um depois, tinham o
momento que os bastava. Sentir-se livre do passado e do futuro era
libertador, e naquela brincadeira de viver o presente, esqueceram de
quem eram. Não havia mais Sócrates, nem Alvinho, nem Zumbi, nem
Aloís. Diziam miau e isso bastava.
Miau.
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